top of page

KHAL+ED - O QUE ACONTECEU DEPOIS DA TROCA


ree

Khal

Acordo já com a plena certeza de que o dia será muito corrido – estou atrasado novamente, inclusive – mesmo morando em Chicago já fazendo muito tempo, ainda não acostumei com o fuso horário, mesmo com o despertador avisando que eu deveria acordar. Me levanto já correndo para me arrumar, abrindo a janela do meu quarto e deixando a luz entrar para iluminar o cômodo naturalmente, dentro de casa fazia um frio danado. Hoje eu darei uma entrevista sobre o livro que eu mesmo escrevi, ele está na cômoda que fica ao lado da minha cama, um livro de capa roxa que se chama “Troca”. Depois de tudo o que aconteceu, eu tive a ideia de escrever sobre para que mais pessoas soubessem o que estava acontecendo lá fora, a guerra na Síria ainda está acontecendo e mesmo que eu já esteja aqui, seguro, ainda tem muitas crianças lá fora que estão passando pelo mesmo que eu passei. E também... tem outro motivo para eu ter publicado esse livro:

ED

Todos os dias, todas as noites eu ficava pensando se algum dia eu voltaria a vê-lo, se algum dia eu poderia abraça-lo e agradecê-lo tudo o que havia feito por mim, por ter salvado a minha vida. Publiquei “Troca” com a intenção de que a mensagem chegasse até ele e que ele pudesse me contatar para finalmente nos encontrarmos. Eu nem sei como ele está hoje em dia, o que anda fazendo e toda essa curiosidade está me matando. É claro que eu já procurei por ele, procurei pela internet, nas redes sociais há uns trezentos Edwards Lanns diferentes, então eu não sei qual deles é o meu Ed.

É tão estranho acordar e não ouvir o barulho de gritos, tiros e explosões. Hoje eu acordo com o canto dos passarinhos. Estaria mentindo caso dissesse que eu já havia superado o passado, que havia deixado tudo para trás, mas isso não é verdade, a guerra me marcou da pior forma possível e as cicatrizes são mais do que visíveis, são dolorosas. As imagens que eu vi quando tinha apenas meus treze anos, ainda estão tão nítidas e isso é desesperador.

Enquanto escovo meus dentes, meu celular vibra em cima da pia e a tela se acende. É uma mensagem de minha mãe, perguntando se eu iria ir almoçar em sua casa. Ela me ligou na noite passada avisando que o Youssef iria lá para almoçar e eu havia lhe prometido que iria também – já fazia muito tempo que eu não os via, desde que havia me mudado alguns anos atrás – então eu digito em reposta, confirmando que iria comparecer. Troco de roupa e saio correndo do apartamento, quando já estou do lado de fora, paro para vestir melhor o meu casaco e começo a correr pela calçada até a estação de metrô mais próxima. O sol está despontando por entre as nuvens no céu azul e é tão bom sentir sua luz e o vento baterem juntos em meu rosto, fazem com que eu deseje continuar ali, vivo.

Desço as escadas para a estação e quando percebo que o meu trem já estava lá, quase partindo, eu aperto o passo e entro no vagão em minha frente, sem nem pensar duas vezes. Em compensação era o vagão que mais estava cheio, mas não o bastante para atacar minha crise de claustrofobia. Minha mãe se preocupava comigo quando a minha saúde mental, mas eu sempre tentava acalma-la dizendo que estava tratando tudo isso em terapia e realmente estava. A terapia tem me ajudado a entender e tentar superar meus traumas do passado, por sorte a minha Terapeuta também era uma refugiada da Síria, então nas sessões nós sempre trocávamos nossas experiências e ela sempre me fazia ver tudo aquilo como um obstáculo. Eu contei para ela sobre Edward e ela disse algo que me marcou demais:

“Se vocês realmente tiveram essa conexão tão forte, ela ainda está aí e ela fará com que vocês se encontrem novamente, pode ter certeza. Laços fortes não se desmancham com o tempo.”

Tomara que ela esteja certa. Saber que algum dia eu possa vê-lo de novo me deixa ainda mais animado. De repente, começo a sentir uma estranha sensação, um formigamento começa a tomar conta de todo o meu corpo e começo a acreditar que é por conta de que estou me segurando na barra no teto do trem para não cair, quando viro-me para o lado direito eu o vejo... era como se uma aura estivesse o rodeando e o destacando no meio de toda aquela gente e eu sei que é ele, não sei como tenho certeza, mas eu sei, simplesmente sei.

O trem para e as portas se abrem, vejo-o descer pois já havia chegado em seu ponto. Eu sei que aquela não era a minha parada, mas se eu não descesse ali, eu poderia nunca mais encontra-lo, poderia nunca mais vê-lo e não queria que a nossa última vez fosse ali, naquele lugar, no meio de toda aquela gente. Saio correndo em sua direção, por um momento eu o perco de vista, aquela estação estava lotada de gente, mas depois logo o vejo, ela já está na saída subindo as escadas. Corro na direção da saída, esbarrando em um monte de gente e logo vou me desculpando.

- EDWARD! – Grito, subindo as escadas. Já estava arfando, completamente cansado e sem ar. Quando ele para e vira-se para mim é aí que tenho ainda mais certeza, pois eu já vi aqueles olhos, eu os reconheceria em qualquer lugar, pois já havia estado naqueles olhos, já havia visto eles no espelho tão de perto. – É VOCÊ NÃO É?! EDWARD LANNS?

Meu coração está tão disparado que a sensação é de que ele logo sairá pela minha boca. Meu corpo para de formigar e fico surpreso ao perceber que ele estava chorando, tão repentinamente.

- K-Khal?! – ele diz, sorrindo e chorando ao mesmo tempo.




Ed

Eu nem havia dormido muito bem naquela noite, havia dormido em cima do meu computador, na minha escrivaninha. Havia babado, pois as teclas do meu Notebook estavam todas úmidas na região onde eu havia desmaiado. Me levanto e mesmo sem me trocar eu já desço para tomar um café – havia acordado muito cedo – e enquanto tomava, peguei o meu celular para dar uma olhada nas redes sociais. O grupo com os meus amigos estava lotado de mensagens, e eram da Kauany convidando o pessoal para sair hoje à noite. Quase toda semana nós frequentávamos um bar perto do trabalho da Danielly (esposa de Kauany) e eu adorava aquele lugar, todos nós na verdade.

Era bom passar um tempo com os meus amigos, o trabalho muitas das vezes me consumia e eu passei muito tempo longe do país em um Intercâmbio para a Malásia com um projeto de vida que eu e minha equipe de Relações Internacionais fizemos em Kuala Lumpur. Fora uma viagem longa e cansativa mas conseguimos aproveitar muito e até passamos para visitar Singapura depois que acabamos o serviço, antes de irmos embora. Ficamos uns dois anos na Malásia e quando eu voltei, Chicago parecia uma cidade completamente diferente de como estava quando a deixei e eu precisei me atualizar de tudo, havia perdido o casamento de Kauany e Danielly já que quando elas haviam marcado o serviço surgiu de última hora e tivemos que voar às pressas para a Malásia e até hoje não me perdoei por perder o casamento delas.

Kauany e Danielly se conheceram quando entramos no Ensino Médio e desde então são completamente apaixonadas uma pela outra e atualmente estão planejando adotar uma criança. Em pouquíssimo tempo Danielly entrou no grupo e já conquistou todos nós e pasmem, Ace também está no nosso grupo. Ace se aproximou muito de nós depois do que rolou no Ensino Fundamental.

KHAL

Aquele nome sempre surge involuntariamente em minha cabeça quando me recordo do que aconteceu no passado. Sinto uma corrente elétrica percorrer e cortar todo o meu corpo e aquela sensação eu sinto desde que a troca acabou, toda vez em que me lembro de seu nome e toda vez que eu lembro que aquilo acabou. E toda a vez que esse nome me surge na minha memória eu fico me perguntando se algum dia eu voltarei a vê-lo e também fico me perguntando como a família dele estar, sua mãe e seus irmãos.

Depois de tomar o meu café eu finalmente vou para o banheiro me trocar e escovar meus dentes. Preciso ir para a agência hoje para resolver algumas questões pendentes sobre o nosso novo projeto. Lembro que minha mãe insistia para que eu tirasse a minha licença para motorista, mas eu vivia falando para ela que não precisava de um caro (Assumo que isso melhoraria minha vida na questão de transporte) mas eu gastaria muito para usar apenas para ir ao trabalho, já que todas as viagens que eu fazia em trabalho ou com meus amigos, outras pessoas iam dirigindo ou íamos de ônibus ou avião dependendo do quão longe fosse. Para ir ao trabalho eu usava o metrô mesmo, tinha uma estação que não ficava muito longe do prédio onde eu morava.

Tenho uma sorte tremenda, pois quando chego na estação o trem ainda estava lá e pronto para fechar suas portas e partir. Corro entre as pessoas, esbarrando em algumas mas me desculpando logo em seguida e assim eu entro no trem, aliviado por ter conseguido entrar a tempo. Aquele trem estava sempre lotado, era praticamente impossível de você encontrar algum conhecido, pois nem os rostos dava para ver direito, já que eram tantos, um mar de faces.

Assim que o trem começa a andar, eu sinto uma estranha sensação percorrer por todo o meu corpo, era como a corrente elétrica que mencionei antes, quando eu me lembrava do Khal, só que bem mais intensa e aguda e logo em seguida um formigamento bizarro começa a tomar conta de todo o meu corpo. Quando olho para a minha mão direita, tenho a sensação de ter visto um fio vermelho amarrado no meu dedo anelar. Um fio vermelho longo rodeado por uma aura dourada cintilante que atravessava as pessoas e eu não conseguia enxergar o seu fim, mesmo seguindo-o com os meus olhos.

Comecei a achar que eu estava passando mal, pois minha pressão caía algumas vezes depois que eu acordava, então quando o trem para e abre suas portas eu saio rapidamente para tentar respirar um ar mais puro, vou direto para as escadas e subo os degraus correndo, para a saída.

- EDWARD! – quando escuto aquela voz, aquele grito, o meu corpo para involuntariamente, como se tivesse vida própria e eu não conseguia me mexer de jeito algum. Olho para a minha mão direita e o fio vermelho ainda está ali, sigo-o com os meus olhos e vejo que ele para em um moço, também amarrado no dedo anelar dele. – É VOCÊ NÃO É?! EDWARD LANNS?

- K-Khal?! - é inevitável, ao ouvir aquela voz e ao olhar para ele, eu começo a chorar, porque eu sei quem é que estava ali e as lágrimas saem involuntariamente.

- Obrigado... – ele diz, também começando a chorar – por salvar a minha vida, Edward!

Eu não aguento, deixo a minha maleta cair no chão e corro em sua direção, as lágrimas embaçando a minha visão e voando pelo ar com o vento que batia em meu rosto enquanto eu corria e quando finalmente o alcanço e o abraço a sensação é a melhor de todas. Eu sinto um calor tão aconchegante, sinto-me leve e completo, como se algo estivesse me faltando antes e eu não queria que aquele abraço acabasse nunca, pois sinto que se o soltasse nunca mais o veria novamente, como se fosse perdê-lo novamente. Sentir o seu toque era mágico, eu nunca havia sentido aquela sensação com ninguém e mesmo me sentindo tão bem eu não conseguia parar de chorar.

- E-Eu não acredito que o encontrei aqui... – ele diz e sua voz soa como música

- É v-você mesmo, Khal? – pergunto, ainda sem acreditar.

- Quem mais gritaria o seu nome em uma estação de metrô, bobo?! – ele responde, rindo. – E-Eu preciso ir, não posso me atrasar mais do que já estou.

- Como o verei novamente? – pergunto, finalmente soltando-o.

- Anote o meu número de telefone... – Khal diz, me entregando o seu celular – mande-me uma mensagem e vamos nos ver novamente, eu prometo!



Khal

Não conseguia acreditar no que havia acabado de acontecer. Era ele mesmo, Edward, o meu Ed. Finalmente havíamos nos reencontrado e foi tudo tão rápido, não tivemos nem tempo de conversar e agora já estou tendo que correr para o local do evento. Ele estava tão diferente, o Ed, muito diferente de quando estive em seu corpo – isso é bem óbvio já que naquela época tínhamos apenas 13 anos – e mesmo assim me espantei com a sua mudança drástica. Agora ele usava o cabelo louro em um corte ainda mais curto que o de antes e agora tinha barba, uma coisa que eu reconheceria de longe eram os seus olhos azuis, quando os vi pela primeira vez no espelho eles me marcaram profundamente, seria impossível de esquecê-los.

Enquanto vou correndo para o teatro – local onde será a entrevista – não consigo conter o sorriso bobo que se alarga em meu rosto. Só consigo pensar em quando vou revê-lo e torço para que o celular em meu bolso vibre logo, sinalizando a chegada de sua mensagem. A minha Terapeuta ia surtar com esse corrido, já não via a hora de contar para ela.

Quando chego no teatro, os seguranças de lá me mostram por onde eu teria que entrar – que era uma área dos fundos – e lá eles me levam até um camarim onde pedem para que eu espere até dar o tempo. Eu jurei que estava atrasado, mas consegui chegar alguns minutos antes que a entrevista começasse. Não estava nervoso no caminho, também com o encontro com o Ed eu nem tive tempo para ficar nervoso com a entrevista, mas quando eu entrei no camarim, o frio na barriga veio. Era a primeira vez que eu falaria sobre tudo o que tinha acontecido depois de todo aquele tempo, mas em público e a sensação do nervosismo tomou conta do meu corpo. Aproveitei pra abrir o frigobar que tinha ali no camarim e peguei uma garrafa d’água, pois estava sentindo uma queimação grotesca bem na boca do estômago. A minha Terapeuta me alertou dizendo que eu poderia passar um pouco de nervoso, mas ela me fez crer de que eu estava finalmente pronto para aquilo – tanto que antes de aceitar o convite da entrevista, eu primeiro falei com ela e só depois fui dar a resposta para a equipe – porque além de ter muita gente, a entrevista seria transmitida para uma emissora de Televisão bem famosa de Chicago.

Os seguranças voltam ao camarim me dizendo que a entrevista já iria começar e me escoltam até o palco, onde fico atrás das cortinas. Me sinto atentado em espiar para ver quantas pessoas estavam ali, mas só em ouvir os flashes das fotografias, os murmúrios eu já me senti nervoso o suficiente e não o fiz.

- Hoje, iremos receber aqui nesse palco, um sobrevivente de uma Guerra que vem assolando e crescendo cada vez mais no seu País... – Quinn, a apresentadora do programa começa.

Antes de ela anunciar o meu nome, o segurança me dá um toque me sinalizando de que era a minha entrada. Eu passo entre as cortinas e os milhares de flashes me são atirados e aceno para a plateia sem enxergar muito bem quantas pessoas haviam ali, por conta dos flashes. Dou um abraço em Quinn, a comprimento e me sento em uma poltrona ao lado da dela.

- Khaled Banan, autor de Troca! – ela finalmente me anunciar e os aplausos vem, e é quando finalmente eu consigo enxergar a plateia e aquele lugar estava lotado. O teatro era gigantesco, aguentava umas duzentas pessoas e todos os assentos estavam ocupados, não havia um vazio e eu sentia o meu coração bater tão forte, como se ele fosse sair pela minha boca. Um assistente de palco vem até mim e me entrega um microfone. – É um prazer recebe-lo aqui hoje, Sr. Banan. Fico feliz que tenha aceitado o meu convite.

- O prazer é todo meu, Quinn. – respondo com um sorriso e nem sei como não estou gaguejando – Talvez eu tenha surtado um pouco quando o convite chegou no meu e-mail. – todos começam a rir logo após Quinn.

- Bom, Sr. Banan... você tinha seus treze anos quando passou pela Guerra, aposto que não foi nada fácil lidar com tudo aquilo, ainda mais sendo uma criança. Como foi a sua adaptação aqui em Chicago? – ela me faz a primeira pergunta.

- Por favor, me chame de Khal... – digo, sendo simpático – e sim, não foi nada fácil passar por tudo aquilo e... a minha adaptação aqui... podemos dizer que ela teve seus altos e baixos. Eu cheguei aqui com a minha mãe Jamile, minha irmã mais nova Soraia e o meu irmão mais velho Youssef. Naquela época os Estados Unidos estava em um mandato bem complicado então os Imigrantes não eram muito bem recebidos aqui e então... – respiro e inspiro profundamente antes de falar – eu fui separado da minha família logo quando chegamos e fui mandado para um local de detenção para Imigrantes, onde eram todos da minha idade. Não nego que entrei em pânico quando isso aconteceu e eu ainda tinha perdido o meu pai Kalil na guerra e a minha melhor amiga Aysha enquanto fugíamos da Síria. Foi um momento bem difícil.

- Então você passou por muito preconceito aqui no País? – ela me pergunta, a plateia parecia tensa e fixa em mim.

- Muito, muito mesmo... – começo – muitas das coisas eu deixava passar e não as via, porque era apenas uma criança. Mas hoje em dia quando olho para trás e lembro de algumas atitudes que tomaram comigo, vejo que foram completamente racistas e preconceituosas.

- Sim, sim. Eu imagino que tenha sido muito difícil passar por tudo isso sendo bem novinho. E hoje em dia, como está a sua família? Você disse que veio para cá com a sua mãe e os seus irmãos, como eles estão?

- Minha família é... – sinto a minha voz ficar trêmula – eles são tudo pra mim, eu tenho muito orgulho deles, principalmente dos meus pais. Eles fizeram de tudo, sacrificaram tudo para nos tirar da Síria, para que pudéssemos ter uma vida melhor longe do cenário da Guerra e isso foi muito importante. Hoje a minha mãe luta para conseguir a sua aposentadoria, o meu irmão trabalha como Professor de Artes e a minha irmã está cursando Medicina Veterinária na Faculdade.

Youssef sempre foi muito talentoso e apaixonado por Artes, ele é um pintor nato e todas as suas obras são muito lúdicas e profundas. Ele ficou muito popular em Chicago depois que escapamos da Síria, ele compôs uma arte chamada “Cicatrizes” e esse quadro foi seu divisor de águas e foi comprado para ser exibido no Art Institute of Chicago, um dos Museus mais populares da cidade.

- Você acha que hoje em dia o Estados Unidos está mais aberto para receber Imigrantes e refugiados? – Quinn me pergunta

- Não. O mundo não está aberto, o mundo não está esperando por uma guerra mas isso não quer dizer que ela não esteja prestes a acontecer ou que já não esteja acontecendo... – respondo, tentando pensar muito bem nas palavras que vou usar para responder aquela pergunta – acho que... o amor não é mais o suficiente para o nosso mundo, precisamos de coragem e determinação para lutar por nossas causas e movimentos, precisamos de pessoas que tenham ânsia e vontade de mudar o mundo.

- E você se considera uma dessas pessoas? – ela me joga.

- Eu enfrentei uma guerra quando eu ainda tinha meus 13 anos de idade... – começo e tento não lembrar, tento fazer como minha Terapeuta me orientou, mas é impossível. Quando me lembro, quando falo sobre a guerra as memórias me invadem e sinto uma forte dor em meu peito, me sinto tão sufocado e solitário. Sinto que ninguém nunca irá me entender e eu odeio isso, odeio estar aqui em minha pele e odeio ter passado por tudo aquilo, odeio carregar todo esse peso que acumulei com todos esses anos. Tentei ser forte por meus amigos, por minha família, mas eu não sou... eu sou fraco e todas as cicatrizes que a guerra me deixou são a prova disso. Eu sou apenas um ser humano, um frágil ser humano capaz de ceder a qualquer instante – perdão... – digo após aquela longa pausa, tentando segurar o choro – e mesmo assim eu não me sinto pronto. Muitos pensam que eu fui forte e sou forte, mas isso não é verdade. Quando olho para tudo o que aconteceu lá atrás eu sinto tanta raiva, ainda mais quando penso que tudo poderia ter sido diferente. Meu pai poderia estar vivo, Aysha poderia estar viva e ambos poderiam estar aqui ao meu lado agora. Quando você é jovem acha que é invencível, mas depois que eu vi todas aquelas mortes, mesmo sendo uma criança naquela época, eu soube que eu também poderia ser um daqueles corpos, é terrível...

- Você é uma inspiração, Khaled. – Quinn me diz ao sorrir – E para provar isso, nós te trouxemos uma surpresa. – ela diz, se levantando e sinalizando – Podem trazê-los!

Era uma família refugiada, uma mãe com os seus dois filhos, um bebê de colo e uma criança um pouco maior (parecia ter entre os seus 10 ou 11 anos). Eles saem da plateia e sobem no palco e um dos assistentes de palco entrega um microfone para a mãe que continua a carregar o seu bebê.

- A primeira vez que eu vi o seu livro em uma livraria e vi aquela capa e aquela sinopse... – a mãe começa a relatar, ao lado de Quinn – eu senti que precisava lê-lo e assim que o fiz, logo em seguida eu o li para os meus filhos. Desde então eles sonham em conhecê-lo. Quero que saiba que mesmo que pareça estar sozinho, você não está, estamos todos aqui e só nós sabemos a dor que carregamos. Eu perdi o meu marido para a guerra e também tem sido difícil carregar todo esse peso, mas logo eu percebi que não precisava fazer isso sozinha porque eu tenho eles... – ela diz ao olhar para seus filhos e ela tinha um brilho em seu olhar, era tão nítido que foi difícil de não reparar e eu não sabia em como ela ainda conseguia manter aquele brilho nos olhos. Mesmo depois de tudo, depois de perder o seu amado e quando eu vi ela olhando para os seus filhos, eu soube. – e mesmo sendo tão pequenos, eles me ajudaram a carregar esse peso e suportar a dor e isso nunca vai nos deixar, essas marcas e cicatrizes, vamos sempre carrega-las porque elas fazem parte de nós e isso não é romantizar o sofrimento ou a dor, mas sim assumi-las para que todo o mundo saiba que as pessoas do outro lado, lá fora, sofrem e ainda estão sofrendo e você fez isso e muito mais com esse livro. Não apenas mostrou para o mundo, como também o chocou e isso é necessário. Você é sim uma dessas pessoas.

A criança mais velha vem correndo em minha direção e quando eu me agacho para recebê-la, o garotinho me abraça com força. Ao olhar para aquele garotinho, eu me vejo ali, me vejo naquela criança e por um momento, por mais pequeno que seja, eu sinto uma pitada de felicidade como nunca havia sentido fazia muito tempo. E mesmo chorando, ali enquanto abraço aquela criança, eu consigo sorrir e é um sorriso sincero, um sorriso não só de felicidade mas também de alívio. Como se tivesse finalmente alcançado o meu objetivo e eu me sinto tão vivo, como nunca havia me sentido e leve também. Aquele abraço me faz sentir feliz mesmo com tanta dor que eu carrego e continuarei a carregar.

*

Depois da entrevista eu saio do teatro e vou para o trabalho de Youssef. Já fazia muito tempo que eu havia prometido de ir visita-lo durante o seu expediente no colégio e ele era um professor muito popular, as pessoas o amavam e eu conseguia entender o porquê. You era gentil e doce, mamãe costumava dizer que ele se parecia muito com nosso pai e isso é verdade. Papai ao mesmo tempo que era amável e gentil, ele também era bravo e destemido quando precisava, focava em nos proteger, esse era o seu único objetivo e durante a guerra depois que o papai morreu, Youssef assumiu o papel de protetor.

O metrô me deixa na estação e saio dele novamente, indo em direção ao colégio. You trabalha em um dos melhores colégios de Chicago e era um professor consagrado na instituição. O colégio tinha um terreno bem extenso e o campus era gigantesco, lembrava até mesmo o de uma faculdade, os laboratórios ficavam separados do complemento principal que por si só já era gigantesco, com mais de quatro andares. Eu me dirijo até o segundo complemento da esquerda que era o de artes, onde ficavam os clubes e cursos. Quando chego na frente da sala de Youssef eu espero o sinal tocar e os alunos logo vão saindo aos montes, tenho até que me encostar na parede para não trombar com eles. Entro na sala e lá está You em sua mesa, de pé na frente dela enquanto arruma alguns papéis.

- Será que o Senhor Professor tem um tempinho para o seu irmão caçula?! – digo ao entrar, sinalizando que havia chegado.

- Khal! Meu deus, não sabia que viria aqui hoje! – You responde todo alegre e sorridente, vindo para me abraçar

- Sei que estava lhe devendo uma visitinha, então aproveitei que hoje estava mais desocupado para vir. – respondo e vou em direção aos vários quadros que estavam espalhados pelo mural de exposição na sala.

- Faz tempo que você não visita a mamá, aposto que ela vai adorar vê-lo. – ele diz, voltando para a sua mesa.

- É... – eu digo mas não presto muita atenção no que Youssef está falando porque um quadro no mural chama muito a minha atenção. É difícil descrevê-lo, mas é uma tela toda escura, com várias manchas vermelhas de tinta (imitando sangue) que compõe o rosto de uma criança chorando. Em baixo do quadro há o nome de seu criador e também o seu título: Hana Maluf – Marcas. – que quadro é esse?

- Ah esse aí... – Youssef diz, vindo até mim e parando bem ao meu lado, também olhando para o quadro – é da Hana, uma de minhas melhores alunas. Ela é como nós, Khal, uma refugiada.

Eu não sabia que existiam tantos como nós ali em Chicago e pelo que fiquei sabendo no Canadá também estava concentrado um dos maiores índices de refugiados da Síria. Todos aqueles dias eu me senti tão sozinho e perceber que haviam tantos como eu me machucava ainda mais e mesmo assim eu sentia um pouco de alívio, por não sermos os únicos ali.

- Me d-desculpe... – digo, com a voz trêmula e as mãos bem fechadas.

- Por que está se desculpando, Khal? – ele pergunta, confuso.

- Eu sou um covarde... – não consigo olhar para ele, eu me sinto asqueroso. Todo aquele momento eu estive escondido, estive fugindo de meu passado, reprimindo-o e tomando toda aquela dor apenas para mim – eu me afastei de vocês porque não conseguia mais vê-los sem lembrar de tudo, sem lembrar do papai e da Aysha... – as lágrimas voltam e tento reprimi-las, não quero parecer ainda mais fraco e covarde – pensei que assim seria melhor para nós e vocês sempre continuaram tão fortes, mas tudo para mim é tão pesado e mesmo que eu queira... não posso andar por aí como se nada tivesse acontecido.

- Não precisa se desculpar por isso... – Youssef responde, passando seu braço em meu ombro – temos o nosso próprio tempo para pensar nas coisas, Khal. E você utilizou o seu tempo, o fato de você estar nos procurando agora e vindo aqui se desculpar, mesmo se sentindo tão sobrecarregado, já mostra o quão forte e corajoso você é. Quer saber?! – ele diz ao me soltar – Busque algo que te faça bem, não precisa ir ver a mamãe agora, ela vai compreendê-lo. Eu achei a arte, todos nós temos algo ou alguém que nos faz bem, você pode se jogar nisso ou nos braços dessa pessoa, Khal. Pare de carregar tudo sozinho, isso não vai te fazer mais forte, vai apenas machuca-lo ainda mais.

Quando Youssef me diz isso, eu me lembro do meu encontro com Ed na estação e logo tudo faz sentido. Eu não estive sozinho porque queria estar sozinho, mas porque eu precisava estar sozinho, eu precisava enxergar as coisas, precisava esclarecer tudo e passar pela dor e não reprimi-la, não guarda-la mas sim solta-la.

- E-eu preciso ir! – digo, saindo correndo da sala.

- NÃO CORRA PELOS CORREDORES! – Youssef grita, rindo.




Ed

Quando chego no trabalho sou recebido e surpreendido com uma salva de palmas de todos da agência. O nosso gerente, Bruce, vem até mim me cumprimentar e me dá um abraço bem aperto com direito a tapas nas costas. Claro que eu gosto de toda aquela atenção, mas mesmo assim fico envergonhado. Sei que toda aquela comemoração é por conta do nosso projeto em Kuala Lumpur e sei que foi um projeto bem notável e grandioso. Ele deu muito certo então era meio que impossível de passar despercebido e ainda dei tudo o que tinha de mim naquele projeto, eu o levei muito a sério.

Depois de toda aquela comemoração eu vou para a minha sala onde finalmente me sento em minha mesa. Ainda não consigo tirar o encontro com Khal de minha cabeça. Depois de todos aqueles anos nós fomos nos encontrar logo agora e toda aquela sensação que aquilo me passou, o que eu senti quando estive em seus braços. Lembro de quando a Sra. Lee, nossa professora do Ensino Fundamental, me disse que minha conexão com Khal era algo muito além do que podíamos sentir ou entender e ela estava certa. Nossa conexão permaneceu forte depois de todo aquele tempo, se passaram dez anos e mesmo assim ela não perdeu a sua força e eu pensava que depois que Khal e sua família escapasse da guerra, ela iria acabar e por algum tempo pareceu mesmo, mas ela não acabou, ela apenas descansou.

Eu nunca fui uma pessoa que acredita muito nessas coisas de misticismo, mas o que eu vivi com o Khal mudou a minha visão para tanta coisa. Como uma conexão pode ser feita assim tão de repente com duas pessoas tão diferentes e tão distantes? E mesmo depois de tanto tempo, dez anos, continuar acesa? Talvez eu nunca iria ter a resposta para nenhuma dessas minhas perguntas e mesmo que o mistério me torturasse, talvez fosse melhor assim, não ter a resposta.

- Olá, Sr. Lanns. – diz um de meus assistentes, Tucker, ao entrar na sala – Espero não estar atrapalhando...

- Que nada, entre e sente-se. – digo recebendo-o – Em que posso ajuda-lo?

- Recebemos hoje essa carta aqui endereçada para o senhor, não parece ser nada sobre algum serviço. O Remetente parece ser uma tal de Jamile Banan... – Tucker diz, me entregando um envelope de papel pardo.

- O-Obrigado, Tucker. – agradeço ao receber a carta. Banan? Aquele era o sobrenome de Khal, quem da sua família poderia me enviar uma carta e como me encontrou e ainda mais onde eu trabalho?

Tucker sai da sala e assim que fico sozinho eu me levanto, vou até a janela e abro o envelope, tirando um papel dobrado de dentro dele. Era uma carta bem curta até, com uma letra bem caprichada e em um Inglês muito bom.

“Olá Edward, espero que essa carta chegue até você pois foi difícil de encontra-lo e só após conhecer sobre o seu trabalho que eu percebi que era você. Deve estar confuso e se perguntando por que estou te contatando. Enfim, eu sou Jamile a mãe de Khaled e desde que escapamos da Síria, ele não para de falar em você e foi difícil de fazê-lo se abrir conosco na infância e na adolescência. Sabe, o Khal sempre foi um menino muito amoroso e doce, mas ele não gosta muito de compartilhar suas dores e seus sentimentos e é difícil de fazê-lo se abrir.

Desde que ele se mudou e começou a trabalhar em seu livro, nunca mais o vimos e ele tem se mantido afastado desde então e é por esse motivo que eu estou entrando em contato com você. Mesmo sabendo o quanto meu menino é forte e corajoso eu temo por ele, temo que algo aconteça com ele e sei que Khal carrega muitas feridas e cicatrizes, até mais do que nós, já que ele era apenas um garoto de 13 anos quando passou por tudo aquilo.

Quando Khal finalmente se abriu comigo e me falou sobre o garoto com o qual ele trocou de corpo, eu fiquei muito surpresa. Admito que no começo eu desacreditei, Khal estava passando por uma guerra e sendo apenas um garoto ele poderia estar apenas imaginando tudo isso para aliviar toda aquela tensão, mas depois que vi o seu relato em uma matéria na Internet eu soube que aquilo que ele me contou era verdade. Então se a ligação entre vocês for tão forte e poderosa quanto Khal me disse, eu tenho certeza de que ele irá se abrir contigo.

Por favor, proteja o meu menino, faça-o encontrar a luz e a paz novamente.

E obrigada por nos salvar.

Termino de ler aquela carta com uma sensação muito forte espalhada por todo o meu corpo, como uma pressão muito poderosa. Eu sinto uma felicidade enorme, mas logo toda essa felicidade desaparece abrindo espaço para a preocupação. Eu não fazia ideia de que Khal estava passando por tudo isso, e por um momento eu começo a sentir uma forte pressão em meu peito junto com uma sensação péssima de sufoco como se eu estivesse engasgado com alguma coisa. Tínhamos treze anos na época em que conheci Khaled e ele estava passando pela guerra, a mesma guerra que te tirou sua melhor amiga e o seu pai e agora eu consigo imaginar porque ele esteja passando por aquele momento tão difícil, são marcas que a guerra lhe deixou.

Me sinto horrível por ele e não consigo evitar a sensação que me invade, a mesma sensação que me fez trocar de corpo com Khaled naquele época, só que dessa vez não estamos trocando de corpo. É estranho quando não percebemos como as pessoas ao nosso redor estão perdendo a luz e isso acontece frequentemente e essas pessoas precisam de alguém que lhes mostre o caminho de volta, Khal é uma dessas pessoas e agora eu sei, eu posso ajuda-lo a encontrar o caminho.

Rapidamente eu pego o meu celular, abro o aplicativo de chat e já mando uma mensagem para o número do Khal. Vou ver o pessoal essa noite e aposto que é uma chance para que ele conheça os meus amigos, Kauany vive falando como sempre quis conhece-lo, desde que contei que foi Khal quem a consolou quando a avó dela havia falecido e ela sente que tem uma dívida com ele.

Eu: Me encontre às 19:00 naquela mesma estação. Tenho uma surpresa.

Quando a palavra Digitando... aparece na frente do nome do Khal no chat eu sinto um frio na barriga, algo que há muito tempo não sentia.

Khal: Eu ia te mandar mensagem agora mesmo hehe. Pode deixar, estarei lá.

Não consigo conter o sorriso bobo que se abre em meu rosto e sinto o meu rosto ficando vermelho. Fico pensando na reação do pessoal ao finalmente conhecer o Khal, eles estão cansados de tanto me ouvirem falar sobre ele, mal posso acreditar que esse dia finalmente chegou. Me sinto tão ansioso que mal consigo me concentrar no trabalho e quero que as horas passem o mais rápido possível.

*

Já estava na estação apenas esperando Khal chegar e enquanto ele não chegava eu estava tão nervoso que ficava pensando no que iríamos conversar quando fomos nos ver. Nunca tivemos uma conversa normal porque nunca tivemos oportunidade e nem tempo para isso, todas as vezes que eu me interagi com Khal pelo meu diário, foram para nos comunicarmos sobre nossos planos e também para nos conhecer mais um pouco, só que nada tão profundo e éramos crianças naquela época, com certeza mudamos muito nesse espaço de tempo.

Estava com medo de não reconhecê-lo mais e nosso papo não fluir. Como eu ia saber do que Khal gostava? Aquilo estava me deixando louco e eu não queria estragar as coisas entre nós, não queria que ficasse estranho e tinha medo de que não fosse a mesma coisa de antes. Quando éramos crianças fomos apenas amigos, mas sinto que isso está evoluindo para algo maior, maior até do que imaginávamos.

De repente, a minha visão escurece e me assusto, porque sinto um calor ao redor de meus olhos, tapando-os. Meu coração começa a bater tão rápido que não posso controla-lo.

- Adivinhe quem é?! – por mais que fosse clichê, eu sabia quem era e ao reconhecer aquela voz eu não pude conter o sorriso que abre em meu rosto.

- Você me assustou! – respondo, virando-me para Khal.

- Eu pensei que aqui estaria cheio nesse horário, parece que me enganei... – ele estava tão lindo que nem prestei atenção no que ele estava dizendo. Estava usando uma jaqueta jeans com pelinhos na gola, uma camiseta da banda OneRepublic preta por baixo, uma calça jeans bem clara e sapato Vans xadrez preto e branco. – está me ouvindo, Ed?

- A-Ah estou s-sim! – respondo assim que ele corta meus pensamentos – Eu também pensei que iria estar cheio.

- E aí? Pra onde vamos? – ele me pergunta, parecia estar muito ansioso.

- Se eu contasse deixaria de ser surpresa né?! – respondo, convencido em não dizer.

- Assim vai me matar de curiosidade! – Khal exclama.

- Mas enfim... como você tem ido? – pergunto, tentando puxar assunto. O metrô finalmente chega e entramos, Khal apenas me acompanha até sentarmos em um dos banquinhos lá dentro, um do lado do outro. Não conseguia não pensar em seu cheiro e sei que não iria esquecer tão cedo, ele cheira tão bem.

- Não tão bem quanto você. Depois que nos encontramos aqui, fui pesquisar sobre você e vi que já fez alguns projetos pra fora. – Khal me diz, parecia orgulhoso

- F-Foi uma experiência bem legal... – percebo que Khal evita falar sobre ele, mas mesmo assim tento mais uma vez – você publicou mesmo um livro? Isso é muito legal!

- É... – ele diz, o sorriso tão lindo sumindo de seu rosto e é nesse mesmo instante que já me arrependo de tentar – foi difícil ter que relembrar tudo aquilo, mas lembrar de você me deu forças pra isso!

- Queria acreditar nisso... – digo, abrindo um sorriso – mas foi você quem me deu forças, Khal. Me deu forças para que eu pudesse sair de minha zona de conforto e abrir os meus olhos, fez com que eu me tornasse uma pessoa mais empática e menos egoísta. Você é muito forte.

O que eu havia dito era a mais pura verdade, mas não podia julgar Khal por não querer relembrar o passado. Tudo aquilo deve ter sido mais difícil para ele do que foi para mim, por mais que estivéssemos trocando de corpo naquela época, a vida que corria risco ali era a dele e não a minha. E nos momentos em que não trocávamos, eu estava na escola ou brincando com o pessoal, enquanto ele tentava lutar pela própria vida, com apenas treze anos e aquilo me machucava. Fui uma criança bem egoísta e apática antes de conhecer Khaled, mas agora eu sinto dores que não são minhas e sinto a necessidade de fazer mudanças, não como uma dessas pessoas que sofrem e passam por essas coisas, mas sim como uma pessoa que não passa e vive no conforto e na segurança. Não quero tapar vozes, quero fazê-las ecoar onde eu puder alcançar.



Khal

É até um pouco estranho estar ali ao lado de Edward. Nunca imaginei que isso fosse acontecer algum dia, eu nem sabia se algum dia conseguiria sair daquele país. Mas não quero pensar nisso agora, estamos aqui juntos e quero me esforçar para ser uma nova pessoa, mais sociável e animado, quero me forçar a sair de casa e aproveitar e curtir tudo o que eu não consegui aproveitar antes.

O metrô nos deixa na próxima estação e depois nós pegamos um ônibus para irmos até o tal lugar que Ed nega a me contar qual é. Já havia me esquecido do quão imensa Chicago era, por mais que a cidade fosse grande e tivesse de tudo, era demorado até chegarmos em tal lugar. Descemos do ônibus em um ponto que fica ao lado de um pub que está cheio de gente, estava tão lotado que as pessoas haviam trazido algumas mesas e cadeiras para a calçada.

- EEEEEEEED! – vejo uma moça vir voando para cima de nós e se jogar nos braços de Edward que a abraça com força. É Kauany, agora que eu a reconheço, ela está diferente, muito diferente. Agora um corte undercut, mas seu cabelo continua castanho

-Você realmente não perde a oportunidade de me assustar né?! – Ed diz sorrindo e só agora eu paro para reparar no quão lindo e contagiante é o seu sorriso.

- Para não perder o costume! – ela responde, ofegante.

- Quem é esse aí, Ed? – um outro moço vem em nossa direção. É Ítaro e ele não está tão diferente de antes. Parece que emagreceu um pouco, mas ainda continua gordinho, ele parece um ursinho e dá vontade de abraça-lo.

- Peço para que não surtem aqui antes de eu falar... – Ed começa, pronto para me apresentar.

- É outro dos seus ficantes?! – Kauany diz, tirando sarro.

- QUE?! NÃO! – Edward responde abruptamente, corando e não consigo me conter, solto uma risadinha boba. – Você pode me deixar falar antes?! Meu deus... esse é o Khaled. Vocês já o conhecem...

- O QUE?! – Kauany já começa a gritar, ignorando o que Ed disse antes – NÃO BRINCA!

- E-Er... o-olá pessoal. – digo, tentando parecer simpático e menos tímido.

Kauany me abraça de repente, não tenho nem tempo de reagir e fico até assustado por ser tão repentino. Todos param e ficam olhando para nós e eu não consigo falar nada, parece que nada sai. Penso em algo para dizer mas parece que a minha traqueia está completamente tapada, nem a palavra mais forte poderia abri-la.

- Sei que agradecer não é o bastante... – ela diz, ainda me abraçando – mas obrigada pelo que fez por mim, você me deu tanta força, Khal.

- D-Do que você está falando? – pergunto. Eu realmente não sabia do que ela estava falando.

- Eu contei para a Kauany que foi você quem a consolou quando a sua avó morreu... – Ed me conta – enquanto você estava em meu corpo.

- A-Ah... – digo, não consigo parar de gaguejar e sinto meu rosto queimar - aquilo? N-Não foi nada demais...

- ESQUEÇAM! – Ítaro grita, levantando um copo – HOJE É DIA DE COMEMORAR, O KHAL FINALMENTE ESTÁ AQUI!

- É ISSO AÍ! – Kauany grita e começa a me puxar para dentro do Pub, pelo braço. – HOJE PODEM COLOCAR TUDO NA CONTA DA DANNY!

- KAUANY! – Danny chama-lhe a atenção

Estava com medo de que eles fossem começar a me perguntar coisas sobre a Síria ou sobre a guerra, mas não. Diferente das entrevistas, onde eu era o centro das atenções como o “coitado” ou “sofrido” ali eu era apenas o Khal. Alguém que eles sempre quiseram conhecer, me trataram como se eu fosse um amigo virtual que finalmente estivesse visitando-os.

Kauany me arrastou para cantar no karaokê e juntos cantamos Rock N Roll da Avril Lavigne, fiquei um pouco envergonhado, meu Inglês não era lá grande coisa, mas ela me fez relaxar e apenas me divertir. Ítaro já estava bêbado o bastante para tentar erguer Ed e todos começamos a rir das palhaçadas dele, estávamos tão animados que contagiamos as pessoas que estavam sentadas nas mesas ao redor da nossa.

Quando começou a tocar Levitating da Dua Lipa, Kauany e Danny puxaram todos nós para a pista de dança, onde começamos a dançar como se não houvesse amanhã. Cantávamos alto o bastante para que até a lua pudesse nos ouvir, saltávamos como se fossemos conseguir tocar a bola de discoteca que ficava presa no teto do Pub, girando e espalhando suas luzes coloridas e vibrantes por todo o salão. Ed se aproximou mais de mim e começamos a fazer vários passos juntos, eu pegava em sua mão e o girava pelo salão e logo depois ele fazia o mesmo comigo e então morríamos de rir.

Depois de algumas horas, já era bem tarde, quase duas horas da manhã. As pessoas começaram a se dispersar do local e juntos fomos até o estacionamento que ficava duas ruas ao lado do Pub. Kauany insistiu para que eu a levasse de cavalinho até lá, Danny ficou um pouco brava, mas eu disse para ela não ligar e topei o desafio.

- Segura firme hein?! – digo assim que ela monta em minhas costas, pronto para começar a correr.

- Estou bêbada mas não estou louca! – Kauany exclama, com a voz amolecida.

- Você É louca. – Ed responde, rindo.

Enquanto eu corria pela calçada com Kauany montada em minhas costas, o vento frio da noite batendo em nossos rostos, eu senti uma sensação muito incrível. Senti como se fosse uma criança de treze anos novamente, não uma criança presa em uma constante luta para se libertar das amarras da guerra, mas uma criança que já nascera livre. Eu me sentia jovem, e eu queria que aquele deleite fosse eterno, porque por mais que eu não os conhece muito bem, nunca havíamos nos visto desse jeito antes, não comigo aqui, com o meu corpo. Eu sentia que os conhecia a vida toda, como se tivéssemos sido amigos de infância, de escola e de classe, eu finalmente sentia parte de algo.



Ed

Danny insistiu para nos levar para casa, mas eu não sabia onde Khaled estava morando com precisão e estava afim de caminhar um pouco, o Pub ficava longe do serviço, mas não de minha casa, então o caminho seria tranquilo. Khal topou ir andando para me acompanhar (Kauany, bêbada, nos lançou um sorrisinho malicioso e Danny impaciente a enfiou dentro do carro com a ajuda de Ítaro).

- Tem certeza de que vão ficar bem? – Danny nos pergunta. Kauany gritava dentro do carro deixando-a constrangida.

- Vamos ficar bem, Danny. – respondo, soltando uma risadinha ao olhar para Kauany – Mando mensagem assim que chegarmos.

- Vocês são incríveis! – Danny diz, nos abraçando – Khal, foi um enorme prazer finalmente conhece-lo. Você é exatamente como o Ed me contou, obrigada por hoje.

- Vocês que são incríveis... – Khal diz e não consigo evitar o sorriso genuíno que se abre em meu rosto. Uma sensação de missão cumprida, eu não havia falhado com Jamile e não deixaria Khal se afundar, nunca. – nunca vou me esquecer desse dia, foi necessário para mim.

- Nos vemos logo então? – Danny pergunta, ansiosa.

- Sem dúvidas! – Khaled e eu dizemos em coral.

Danny se despede de nós uma última vez com um abraço, entra no carro e então eles finalmente partem, deixando-nos sozinhos. Começamos a caminhar pela rua deserta, estava tudo muito escuro, apenas a luz do luar e dos postes posicionados no meio fio iluminando as calçadas. O silêncio da caminhada é constrangedor e quero quebra-lo, mas sinto medo de ser infiel com os sentimentos de Khaled e não quero quebrar tudo o que construímos naquela noite. Sinto que qualquer assunto que eu puxasse iria quebrar aquilo e faria com que Khal se recuasse novamente, tinha medo de que ele se fechasse novamente e...

Um calor repentino que cobre minha mão direita corta os meus pensamentos, quando olho para baixo, vejo nossas mãos entrelaçadas e eu o vejo, o fio vermelho rodeando-as com o seu brilho dourado. Não sinto mais aquela sensação eletrizante de antes, quando havíamos nos reencontrado e às vezes penso que aquela sensação foi apenas a mesma ligação da primeira troca que fizemos. Como um pedido mútuo e recíproco de duas pessoas conectando-as misteriosamente, algo que nada pudesse explicar a não ser nossas demonstrações, nossos atos. Quando eu troquei de corpo com Khal pela primeira vez, havia desejado aquilo, ambos havíamos desejado. Ambos também ansiávamos pelo nosso reencontro e isso deve ter sido a causa daquela sensação.

Continuamos caminhando silenciosamente com nossas mãos entrelaçadas, e o silêncio já não me era mais incomodo, porque aquele momento ia muito além do silêncio, pois o calor da mão de Khaled o havia quebrado de vez, porque nossos desejos eram mais fortes, nossa ligação, nosso laço é e sempre será mais forte do que qualquer palavra que pudesse cortar o mais profundo eco do silêncio. E eu não ligo, poderia continuar ali com ele, para sempre.



Khal

Acordo no dia seguinte com várias notificações gritando no meu celular e quando o pego, vejo que Kauany havia me colocado no grupo de amigos deles e começo a rir lendo as mensagens e eles já marcando o próximo encontro. Fico feliz, pois finalmente sinto que faço parte de algo e a noite passada foi tão incrível e necessária para mim. Mas hoje é um novo dia, me levanto, vou para o banheiro escovar meus dentes e me trocar, pois hoje é finalmente o dia de eu reencontrar a minha família.

Depois da noite passada, eu me sentia mais confortável e seguro para encontrar minha mãe e meus irmãos. É incrível como que Edward e os outros conseguiram lavar toda a culpa que eu carregava e eu estava me sentindo tão leve, como se nada mais pudesse me abalar. Quando termino de me arrumar, saio de meu quarto e vou para a sala onde pego as chaves do meu apartamento para fechar a casa e ir para a minha mãe. Antes de sair eu pego uma sacola onde estava uma salada de frutas que eu havia feito depois que cheguei em casa, para a sobremesa. A receita de minha mãe.

Dessa vez para sair eu pedi um Uber, pois metrô no Domingo naquela cidade era algo bem complicado, os horários eram bem limitados e eu não queria chegar atrasado, queria ajudar minha mãe com a comida (mesmo que Soraia já tivesse ido dormir lá para ajuda-la no dia seguinte). Quando chego, aperto a campainha. Minha mãe continuava morando naquela mesma casinha que o governo de Chicago havia nos dado depois de muita luta, uma casinha não muito grande mas não muito pequena já que minha mãe veio para cá sozinha com seus três filhos (Tá certo que Youssef já era moço e não deu trabalho, já não posso dizer o mesmo de mim e de Soraia que éramos bem novinhos na época).

- KHAL! – Soraia grita ao abrir a porta, vejo seus olhos brilharem e então ela se joga para cima de mim e eu a agarro em um abraço bem forte e carinhoso.

Ela estava tão grande, havia crescido tanto naquele tempo que eu me mantive afastado que eu quase não a reconheci. Já estava quase na minha altura e agora usava seu cabelo bem curtinho, em um Chanel – que combinava muito com o formato do seu rosto – e estava com um avental, eu sabia que quando chegasse ela estaria ajudando minha mãe.

- A mamãe vai surtar quando te ver, você está tão lindo! – ela continua falando, me deixando ainda mais constrangido.

- E-Eu trouxe a sala de frutas da mamãe... – digo, erguendo a sacola.

- Huumm... – ela diz ao pegar a sacola – eu já estava com fome mesmo.

- É para a sobremesa, mocinha! – reclamo dando um tapinha na mão de Soraia.

- Ai, ai. Tá bom então. Entra logo. – Soraia diz, me puxando para dentro e fechando a porta.

Ao entrar eu tenho vários vislumbres do passado, pois a casa estava do jeitinho que estava quando eu havia saído de lá. A sala continuava muito pequena, mas muito bonita, com dois sofás um do lado do outro e na frente deles, uma pequena TV velha de cubo em cima de uma cômoda de madeira escura bem pequenina. Entre os sofás e a Televisão havia uma mesinha de centro pequena de vidro. Conseguia ver Soraia e eu sentados ali no chão, na frente da TV enquanto passava desenho e desenhávamos em nossos cadernos – competíamos para ver quem desenhava mais parecido com o que estava passando na TV – e quando Youssef chegava do trabalho, nós dois corríamos para recebê-lo.

Na cômoda, bem do ladinho da TV estava um porta retrato de nossa família, quando o papai ainda estava vivo. Eu ainda era muito pequenininho, com menos de treze anos na foto e Soraia ainda era um bebê no colo de minha mãe. Youssef me carregando em seus ombros e eu com meus dois braços erguidos bem alto e papai agachado bem em nossa frente, todos sorridente e alegre e não consigo evitar o sorriso bobo ao olhar para aquela fotografia. Nossa vizinha havia tirado aquela foto no dia dos pais e a minha mãe havia gostado tanto que nunca se desfez daquela foto.

- MAMÃE, O KHAL CHEGOU! – Soraia grita, indo para a cozinha.

Sigo Soraia e vejo a minha mãe na frente do fogão enquanto um cheiro muito bom cobre todo o cômodo – na verdade eu já estava sentindo o cheiro da sala – e ela não havia mudado muito também. Claro que ela havia envelhecido, mas os únicos traços que davam indícios de seu envelhecimento, eram seus fios de cabelo grisalhos e algumas rugas na pele.

- Oh querido... – ela diz ao se virar para mim, levantando as mãos sujas – estou com as mãos todas melecadas para te abraçar agora, vou sujar a sua roup...

Interrompo-a com um abraço muito repentino, pegando ela de surpresa. Estava com saudades daquilo, queria sentir novamente aquele calor que somente ela me passava, a segurança que ela me transmitia e eu lembro dessa sensação quando ainda estávamos na Síria, quando a reencontrei junto de Soraia no posto de segurança e ela veio correndo para me abraçar e me receber. Eu fui tão injusto com ela, com todos eles.

- Eu estava com tanta saudade... – digo, também chamando Soraia para o abraço – me desculpem... eu amo tanto vocês.

- Não precisa se desculpar, meu querido. – minha mãe responde – You nos contou tudo, ele sempre nos contava tudo.

- CHEGUEI FAMÍLIA! – Youssef berra ao entrar.

- Falando no dito cujo! - Soraia exclama, correndo para recebê-lo.

Depois de cumprimentar Youssef, nós três ajudamos minha mãe na cozinha. Eu ajudo ela com o resto da comida e You e Soraia vão arrumando a mesa enquanto conversávamos sobre nossas vidas. Soraia contou como estava gostando de sua faculdade e havia feito vários amigos, Youssef conta que estava em seu mais novo trabalho que logo seria exposto e todos poderíamos vê-lo – ele prometeu que iríamos nos surpreender – e eu conto sobre o lançamento de meu livro e também sobre a noite passada, do meu encontro com Ed e com o pessoal. Minha irmã fica eufórica com aquele relato e insiste para eu conte aquela história com mais detalhe na mesa.

Quando finalmente nos sentamos para comer, mamãe coloca uma foto do papai na mesa, na frente da única cadeira que estava vazia e faz com que todos nós rezemos antes de partirmos para a comilança. Então nós damos as mãos e fechamos os olhos para que ela começasse a recitar a reza.

Terminamos a reza e então eu conto com mais detalhes o meu reencontro com Ed e a minha mãe até se emociona quando eu começo o meu relato, Soraia a abraça para que ela se acalme e voltamos a comer. Desde depois da Troca, depois da morte de papai, depois de tudo aquilo que havia acontecido, eu nunca mais havia me sentido tão conectado com a minha família como estava me sentindo naquele momento. Todos nós, eu, Soraia, mamãe e Youssef reunidos ali em uma mesa de jantar. Era como se eu tivesse sido transportado para a minha infância, antes da guerra, para a nossa antiga casa, quando ainda estávamos todos reunidos e felizes, juntos do papai. Havia demorado tanto tempo para criar coragem para finalmente rever minha família, para reencontra-los e aquele domingo estava sendo perfeito.

Eu finalmente havia entendido, tudo. Sentia o meu coração tão leve, minha alma tão limpa. Todo aquele meu afastamento me fora necessário para que eu aceitasse a dor e passasse pelo luto, pois eu não havia tido tempo de enfrenta-lo na guerra e nem na minha infância – pois era apenas um menino – mas agora eu quero apenas aproveitar cada segundo que este mundo me deu ao lado das pessoas que eu tanto amo e não mantê-las afastadas, mas quero que elas abracem tudo aquilo comigo, quero compartilhar a minha dor e foi para isso que eu também havia escrito Troca. Estávamos ali, os três e eu também sentia que papai estava sentado ali naquela cadeira vazia, olhando com aquele seu sorriso tão sincero e gentil para nós, feliz por finalmente nos ver reunidos e tranquilos, pois foi por isso que ele havia sacrificado sua própria vida. O sol entrando pela janela na frente da pia da cozinha e iluminando nossa mesa, um dia tão lindo lá fora e eu queria aproveita-lo ali, pois quando tudo acabasse e eu reencontrasse meu pai e Aysha, quando esse momento chegar eu vou dizer...


“Eu juro que vivi”

 
 
 

Comentários


Post: Blog2_Post

Formulário de inscrição

Obrigado!

©2021 por Happy Shadow. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page