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HANK - Um conto do Universo de 2070




HANK

Alguns costumam dizer que esse é o Apocalipse, mas eu não acredito nisso. Acredito que o Apocalipse seja o próprio ser humano, a única causa do fim do mundo somos nós mesmos. Nunca satisfeitos, sempre a procura da perfeição, mas essa caça desperta o pior em nós. Ela desperta nossa sede de sangue, alguns instalam o pior de ti na humanidade, estabelecendo regras ainda mais rígidas, e há as pessoas que não conseguem se encaixar nessas novas regras, pois não lhe fazem bem ou por simplesmente não conseguirem viver, a segregação acaba ferindo a existência de pessoas que não vivem de acordo com o padrão que lhes é estabelecido. Eu não era uma dessas pessoas se é isso que você está se perguntando, antes disso tudo eu tinha uma vida ótima – apesar de alguns altos e baixos – eu conseguia dar a melhor vida possível para a minha filha, eu era um pai divorciado, o famoso pai solteiro que as pessoas não acreditavam quando viam. “Ah mas você não sente a falta de uma mulher em casa?”, “O que será da sua filha sem a visão de uma figura materna?” entre vários outros questionamentos inconvenientes.

Eu estava no hospital no momento em que as coisas começaram a desabar. Emily foi fazer mais um de seus exames rotineiros, logo ela ia começar o tratamento com a quimioterapia e depois iria fazer o transplante de medula para finalmente se livrar daquela doença maldita que era a leucemia. Emily já havia nascido com essa doença, ela tinha seus quatorze anos quando as coisas desandaram. Costumava espera-la na sala de espera enquanto ouvia as notícias no meu rádio, eu o levava para baixo e para cima – Emily inclusive reclamava disso, falava que eu precisava de um celular, eu até tinha comprado um mas nunca me adaptei a essa nova tecnologia – a notícia era mais agradável de se ouvir do que se ler (Pelo menos para mim).

“Hoje o Sargento candidato à presidência, Mikhail Serguei Ivanov, dá o seu primeiro depoimento após a vitória da Terceira Guerra e diz que pretende instalar novas regras que serão espalhadas rigidamente para todo o planeta. Sua chapa intitulada como ‘Novo Governo’ foi selecionada a dedos pelo próprio Ivanov e pretende tomar o controle de toda a situação.”

- Nós do Novo Governo queremos transformar esse planeta mundano em um único país, uma única nação onde seremos todos regrados. Depois da morte de meu irmão... pretendo honra-lo e trazer paz ao nome “Ivanov”, tudo o que eu quero é tornar o mundo um lugar melhor de se viver. Não esqueçam de votar e lembrem-se de quem lhes deseja o bem!

“Esse foi o primeiro é único depoimento de Mikhail até o momento, estamos esperando novas informações e notícias sobre o andamento da votação até esse último instante. As votações serão encerradas amanhã no dia dezenove de Novembro.”

É até louco pensar que alguns anos atrás nossa vida era completamente diferente do que temos hoje. Antes se as pessoas tinham que viver escondidas, para manter sua segurança e sigilo, hoje em dia esse cuidado multiplicou. Há câmeras espalhadas por todo lugar, até dentro de nossas casas, nos vigiando o tempo inteiro, vendo se algo sai do controle, vendo se estamos na linha, como uma fileira de robôs prontos para sair da manutenção.

Depois dessa notícia, vejo o Doutor que está cuidando do tratamento de Emily sair do corredor dos quartos e vir até mim, seguido da própria Emily. Ele está com uma caderneta nas mãos, então já sei que ele veio me dar notícias e imagino que sejam boas, já que ele está sorridente.

- Olá, Sr. Simmons... – ele diz, me cumprimentando – o avanço no tratamento da Emily está sendo ótimo. As células cancerígenas têm diminuído cada vez mais, suspeito que semana que vem já começaremos o tratamento com a quimioterapia, para que assim as células vão sumindo de vez.

- Obrigado, mesmo. – respondo e logo me dirijo a Emily – Você está bem, docinho?

- Eu já tenho quatorze anos, pai. – Emily responde, brava

Chamo Emily de Docinho desde que ela era pequena, pois sua personalidade era muito parecida com a personagem do desenho As Meninas Superpoderosas – inclusive a Docinho era a sua favorita – então eu já engatei no apelido, mas ela vivia reclamando que já estava muito grandinha para que eu a ficasse chamando de Docinho na frente dos outros.

- Vai continuar sendo a minha Docinho! – Digo, puxando-a para mais perto de mim e até o Doutor ri – Mas obrigado, Doutor... não sei o que seríamos de nós sem o senhor.

- Que isso, imagine. – ele responde um pouco sem graça – Lembrem-se sempre de continuarem com os exames rotineiros toda semana, é importante para sabermos o avanço da cura na Emily.

- Pode deixar, voltaremos semana que vem. – respondo de prontidão.

Emily se despede do Doutor com um abraço e nós vamos para fora do hospital. O dia estava nublado, como sempre, desde o término da grande Terceira Guerra os dias sempre permaneceram nublados. Deve ter sido a fumaça das bombas e foguetes, a sensação é de que nunca mais iríamos mais ver o sol ou o azul do céu, uma sensação sufocante de aprisionamento. Nós vamos para o estacionamento que fica ao lado esquerdo do prédio do hospital e lá na esquina nós conseguimos ver a multidão que estava se formando, fechando toda a rua. Era impossível de não ouvir os sons das buzinas, os xingamentos, pessoas que apenas queriam passar com os seus carros por aquela região, mas que agora estavam impossibilitadas graças ao engarrafamento que a multidão havia provocado.

- É um protesto? – Emily pergunta, curiosa

- Parece que sim... – respondo, entrando no estacionamento

As manifestações estavam cada vez mais brutas e recorrentes naquele ano. A polícia já usava além dos sprays, suas granadas de gás, já foram autorizados a usar da violência. Aconteciam até mortes nessas manifestações, o que não ajudava em nada, aquilo nunca ia acabar, as pessoas estavam revoltadas com o depoimento de Mikhail Ivanov, pessoas que não concordavam com a sua forma de pensar, com a sua forma de agir. O irmão mais velho de Mikhail Ivanov havia morrido na guerra e seu pai logo depois – o que foi noticiado é que Andrei Serguei Ivanov havia tido um infarto fulminante – e muitas pessoas teorizavam que Mikhail havia matado o seu próprio irmão e também o seu pai, muitos acreditavam que ele era um psicopata frio e cruel, e se pararmos para pensar... pelos dias de hoje... eles estavam certos.

Entro no carro com Emily no banco de trás e pego um caminho diferente para irmos para casa. Um caminho mais longo já que o que estávamos acostumados a pegar não daria, justamente por conta das manifestações e eu também queria evitar aquilo, queria que Emily evitasse ver aquelas coisas.

- Deveríamos participar. – Emily diz e olho para ela pelo espelho no teto do carro

- É perigoso... – respondo – além do mais, você é muito nova para pensar nessas coisas.

- Não há idade para lutar, pai. – Emily responde e aquilo me faz parar para pensar.

Emily era uma garota completamente diferente das outras de sua idade. Sua mãe reclamava disso, queria que ela fosse mais comportada e centrada, mas eu gostava dessa personalidade dela. Emily tinha senso de justiça, era uma garota que sempre que podia debatia sobre direitos humanos e não só isso, seu interesse pela política atual era completamente perceptível e compreensível também. As coisas estavam mudando muito depressa, depois da Terceira Guerra, várias cidades viraram ruína, alguns países foram completamente dizimados, e os números de refugiados continuam aumentando cada vez mais. Mikhail Ivanov fechou a Rússia, todos começaram a suspeitar que ele esteja planejando um golpe e ele tem poder o suficiente para isso, sua família venceu a guerra e agora o nome “Ivanov” deixou de ser apenas mais um nome, agora é uma crença. Muitos acreditam que Ivanov é o salvador, que ele chegou para nos libertar e salvar a população de seu estado “mundano”, ele é o herói para muitas dessas pessoas. Não temos muitas notícias sobre o que essa nova chapa intitulada de “Novo Governo” planeja, mas sabemos que são todos selecionados a dedo pelo próprio Ivanov, pessoas que pensam como ele, que agem como ele. O futuro é incerto tanto quanto o destino de nossas vidas, de nossa civilização.

- Você está certa. – respondo, prestando atenção na pista – Mas é melhor irmos para casa agora, você ouviu o Doutor, precisa ficar de repouso.

- Tudo bem... – ela responde encostada com a cabeça na janela ao seu lado.

Vamos direto para casa. Tive que me mudar para um apartamento menor com Emily quando me divorciei. Eu e Hanna decidimos que seria o melhor a se fazer, não daria para continuarmos morando juntos depois de tudo o que acontece, não naquela casa. Mas o apartamento era o suficiente para apenas duas pessoas e isso que importava para nós, era o que bastava.

- Você quer alguma coisa, querida? – pergunto para Emily, indo para a cozinha.

- Olha que eu abuso viu?! – Emily responde, caçoando

- Que tal pegarmos um filme pra vermos também? – já digo

- Com você?! – Emily ri – Um Chimpanzé escolheria um filme mais rápido. Seu gosto é bem seleto, enquanto eu vejo qualquer coisa.

- Dessa vez deixo o filme em suas mãos, garotinha. – eu gostava de nossas brincadeiras – Netflix tem um catálogo bem denso, não é culpa minha.

Depois de muita conversa e discussão, decidimos de que pediríamos pizza. Emily e eu sempre brigávamos para decidir o sabor, ela nunca queria experimentar outro que não fosse portuguesa com borda recheada de queijo Cheddar, enquanto eu já gostava de navegar entre os diversos sabores que poderíamos experimentar. Então acabamos pedindo metade portuguesa e metade de palmito com queijo. Enquanto a pizza não chegava, Emily e eu sentamos no sofá e esperei para que ela decidisse qual filme iriamos ver. Diferente do seu gosto para pizza, ela gostava de assistir todo e qualquer gênero de filme, Emily sempre foi muito ativa com a cultura Pop, gostava de jogos e consoles, músicas, filmes, séries, quadrinhos, mangás, animes e etc... era uma garota com uma enorme bagagem cultural.

Já que ela demoraria um pouco, liguei o meu tablete e comecei a navegar entre as notícias. Estavam acontecendo muitas coisas naqueles últimos dias, depois da grande vitória de Andrei Serguei Ivanov na Terceira guerra, então quase em todas as manchetes, lá estava o seu nome destacado em negrito, completamente chamativo, logo em baixo uma foto sua com um olhar completamente sério e amedrontador. Quando me mudei para Moscou, ainda casado, ele era um nome recorrente. Era um soldado popular do exército já por seus feitos dentro da política na Rússia, todas as pessoas dentro do governo respeitavam e temiam o Sir. Ivanov e demonstraram ainda mais apoio depois da morte de seu primogênito, Dimitri Ivanov.

Era até difícil (naquela época) dizer, ou tentar adivinhar, o que Mikhail Ivanov pretendia depois de sua gloriosa vitória. Sempre que via sua foto nas manchetes, ao lado de seu pai e seu irmão mais velho. Enquanto Dimitri emanava gentileza e humildade, Mikhail em seu olhar só mostrava desprezo e seriedade, ele tinha o mesmo olhar de Andrei Serguei e era incrível como eles eram tão semelhantes. O mesmo rosto quadrado, todos os Ivanov tinham a pele branca bem clara e olhos castanhos tão claros que pareciam vermelhos, seus traços eram completamente fortes e marcantes, conseguiria identificar um Ivanov de longe, só pelo seu rosto.

- Achei! – Emily exclama, cortando minha linha de raciocínio solitária – Vamos ver Rua Cloverfield 10. Garanto que você vai surtar!

- Lá vamos nós. – respondo já sabendo que vinha coisa por aí.

O filme realmente me pegou de surpresa, era um suspense bem cativante que te prendia do começo ao fim. A pizza chegou quando ainda estávamos no começo, e era grande, então deu para aproveitarmos toda a comida enquanto assistíamos. Eram umas 23:00 quando o filme acabou, então quando Emily foi dormir eu ainda fiquei na sala e liguei no noticiário para ver o que havia de novo. Confesso que eu estava um pouco cético com tudo isso, mas impossível não ficar, eu tinha medo, muito medo de como as coisas iriam ficar. Mas não era medo por mim, mas por Emily, queria saber o que o futuro iria reservar para a minha filha e se iria ser bom o suficiente para ela, era só isso o que eu queria saber.

Toda vez que eu ligava o noticiário, eles mostravam as imagens de vários imigrantes tentando cruzar as fronteiras. Vários países na América Latina e na Ásia haviam sido dizimados e seus sobreviventes agora lutavam pelos únicos resquícios que lhes faltavam, lutavam pelo pingo de esperança que ainda tinham, lutavam por seus filhos e isso era mais do que notável. As mães cruzavam os mares em pequenos barcos carregando seus bebês de colo com toda a força e garra que tinham, pais sacrificavam suas próprias vidas para salvar suas crianças. Aquilo era desumano demais e eu sempre me imaginava ali, eu e Emily, o que seria capaz de fazer para protege-la? Será que eu mataria por ela? Conseguiria agir rapidamente? Aquilo estava me deixando louco.

Desligo a TV e me deito ali no sofá mesmo, tentando afastar aqueles pensamentos apocalípticos, tentando enganar o meu cérebro dizendo que tudo ficaria bem para nós. A verdade é que eu queria que tudo estivesse normal para todo mundo, não nessa situação de guerra e morte, pois não é justo termos que lutar para nos mantermos vivos.

*

No dia seguinte, ainda adormecido consigo ouvir os berros e os sacodes que Emily dá em meu corpo. Ao abrir meus olhos, ouço ela gritar e apontar desesperadamente para a televisão e nas imagens estão passando protestos violentos acontecendo em Moscou e soldados invadindo as casas das pessoas e roubando suas crianças, seus filhos.

- Papai, acorda! – Emily gritava – Eles vão vir para cá.

E não era mentira, lá na TV, em uma faixa que ficava em baixo da reportagem, mostrava o próximo endereço em que eles iriam agir, era o nosso apartamento.

- Vá fazer suas malas, rápido! – digo, me levantando e indo para o banheiro.

Me levantei com tanta pressa que a minha pressão abaixou e tive que me apoiar na pia do banheiro para me manter de pé. Eu sentia o suor frio escorrer por todo o meu corpo e quando levanto a cabeça para olhar meu reflexo no espelho acima da pia, vejo meus lábios pálidos, sem sangue algum. Depois de algum tempo, eu senti a minha pressão voltando ao normal e com ela a minha consciência e me olhando no espelho eu me lembrei dos pensamentos que tive na noite passada, sobre fazer de tudo pra proteger Emily. Era isso o que iria fazer agora, não deixarei que a levem para longe de mim, não permitirei que me arranquem-na.

Saio do banheiro, vou voando para o quarto, tiro minha mala de dentro do armário e a jogo na cama de casal. Vou tirando todas as peças de roupa do meu guarda-roupa e jogando-as para dentro da mala de qualquer jeito, não havia tempo para preparar uma mala perfeita. Depois vou para a sala, pego a bolsa de escola de Emily, tiro todo o material de dentro jogando-o no sofá e vou direto para a cozinha. Pego apenas os alimentos que não precisariam de nenhum preparo para digerirmos, não sabia para onde iriamos, mas seria para longe dali.

- Tô pronta! – Emily disse, me esperando na sala.

- Querida, precisamos conversar... – digo, me ajoelhando na frente dela – lá fora, vai precisar fazer tudo o que eu mandar que faça. Se for necessário me deixar para que fuja em segurança, não hesite. Eles estão atrás de ti, não de mim.

- M-Mas por que de mim? Por que adolescentes e crianças? – Emily perguntava, ela parecia nervosa, não parava de tremer.

- Você é bem inteligente, querida. – respondo – Já deve saber a resposta. Você me entendeu?

Emily apenas assente positivamente com a cabeça, assim me sinto mais seguro e certo do que estamos prestes a fazer. Descemos pelo elevador que estava quase lotado e com fila para entrar, não éramos os únicos com pressa para sair daquele prédio. Entramos no elevador juntos de outras quatro pessoas e todos nós nos assustamos quando o elevador dá um tranco e para, as luzes lá dentro se apagam e junto delas o ar condicionado, fazendo todo o clima lá dentro se esquentar. Puxo e agarro Emily para mais perto de mim.

- Tentem não se mexer muito! – uma moça que estava lá dentro com eles diz – Logo ele voltará a funcionar, deve ter sido apenas uma queda de energia.

- Não... – um outro moço responde, com um bebê em seu colo – eles chegaram e sabem que estamos tentando fugir. Pararam os elevadores.

- Isso é loucura! – uma mulher bem mais velha exclama – Não podem simplesmente entrar nos lugares e fazerem o que querem.

- Eles não só podem, como já estão fazendo. – respondo – É o golpe do Mikhail.

- O que vamos fazer, pai? – Emily me pergunta, assustada

Ao ver o seu olhar de medo, eu notei que eu precisava fazer alguma coisa. Precisava passar coragem para ela e cumprir com a minha promessa interna, eu faria de tudo para protegê-la e agora sabia disso.

- Emily, você fica para trás com as pessoas que estão carregando as crianças... – digo, tentando pensar o mais rápido que posso – os outros venham na frente. Quando o elevador ligar e descer e nos depararmos com eles, vamos para cima, para derruba-los. Enquanto isso os de trás vão correndo para os carros.

- Não, pai! – Emily protesta – Eu não vou te deixar, jamais.

- Querida... lembra do que te pedi? – digo, tentando acalma-la – Preciso que confie em mim. Preciso que fique segura, eu não posso perdê-la.

- I-Isso não é justo... – ela responde, cabisbaixa e revoltada – deixe-me lutar também!

- E você vai. – respondo – Lutará escapando desses desgraçados!

- Promete que vai me encontrar?! – Emily diz, me abraçando – Eu preciso que você prometa.

- E-Eu... prometo. – digo, abraçando-a ainda mais forte

Emily me solta e eu tenho medo de que aquele tenha sido o nosso último abraço, o nosso último carinho. Mas não era hora para pensar naquilo, todos assumimos nossas posições e nos preparamos. O elevador volta a funcionar e continuamos a descer. Fico encarando o mostrador de andar que há em cima da porta do elevador, tentando me preparar mentalmente para o que está para vir, mas a cada andar que passamos, o meu coração pulsa tão forte e rápido que parece que sairá pela boca. Sinto um medo que já há muito tempo não sentia, então era assim que os refugiados se sentiam? Sem escolha, apenas lutar por um único objetivo: sobreviver.

Quanto mais digo para mim que tudo ficará bem, mais aquilo deixa de ser verdade. Era nítido que nada ficaria bem, que nada voltaria a ser como era antes. O elevador apita ao parar e ele finalmente abre suas portas lentamente, mostrando uma barricada de três soldados muito bem armados e equipados parados na nossa frente, atrás deles apenas o estacionamento escuro. Ao ver aquelas armas, aqueles soldados trajando seus uniformes, eu hesito em ir para cima, mas ao me lembrar de Emily e de nosso objetivo, consigo recuperar o pouco de coragem que me faltava, para gritar:

- AGORA!

Nós que estávamos na frente começamos a correr em direção aos soldados, mas eu paro assim que percebo que eles não hesitaram e começaram a disparar contra todos nós, eles acertam até a senhorinha que estava com nós. Só consigo ouvir os berros e também escuto Emily gritar, me agacho e começo a me rastejar, procurando por ela desesperado. Com o barulho das armas disparando, eu escuto tudo muito abafado, mas ainda consigo me guiar pelos gritos de Emily e vou até ela, estava agachada no elevador que ao seu redor, estava todo manchado de sangue e corpos no chão.

- EMILY, LEVANTA! – grito, tentando puxa-la – PRECISAMOS SAIR DAQUI, AGORA!

Com muita dificuldade, eu agarro Emily no colo e começo a correr com ela em direção ao nosso carro, enquanto os soldados estão ocupados com as outras pessoas. Corro agachado para evitar os tiros e tento fazer com que Emily não veja nada daquilo. Quando chegamos no carro, eu rapidamente tiro a chave do bolso e aproveito o barulho das armas para desligar o alarme, que apita e ecoa pelo estacionamento subterrâneo, mas os soldados não escutam por estarem ocupados. Peço para que Emily entre e se esconda nos bancos de trás, no chão do carro e ela me obedece, entro no carro no banco do motorista e o ligo. Quando dou a partida, os soldados já percebem que estávamos fugindo e correm na nossa direção, acelero o mais rápido que posso e começo a dirigir em alta velocidade até a saída do estacionamento.

Quando saímos de lá de dentro, vejo a loucura que estão as ruas de Moscou. Pessoas correndo pela rua desesperadas e passavam na frente dos carros sem nem hesitar, fugindo dos soldados, o cenário é o mais caótico possível.

- Para onde vamos, pai? – Emily pergunta, quando saímos da cidade e entramos na pista

- Para a casa do tio Sam... – digo, tentando manter meus olhos na estrada – ele vai saber o que fazer. Venha, sente-se no banco carona.

Emily pula para frente, senta-se no banco carona e passa o cinto de segurança. Depois de um tempo dirigindo na estrada, percebo o quanto ela parece cabisbaixa e pensativa.

- O que foi, querida? – pergunto, preocupado

- Nada, é só que... – ela diz, parecia estar procurando as palavras certas – se eu tivesse ido com a mamãe para o Texas, você não teria que passar por tudo isso. Poderia ter uma vida normal sem ter que se preocupar com uma pessoa doente e...

- Não diga! – eu a interrompo furioso – Você não é um fardo que eu escolhi carregar, Emily. É a minha filha e eu a amo, te manter segura é meu dever. Minha vida normal é ao seu lado.

- Eu... só tenho medo de que algo te aconteça... – ela diz, começando a chorar

- Nada vai nos acontecer, querida... – digo, colocando minha mão direita em sua perna – eu prometo.

*

Depois de algum tempo na estrada, chegamos em Suzdal, cidade em que meu amigo mais íntimo Samuel Alkaev morava. Suzdal ficava a uns 220km de Moscou, então não demorou muito até chegarmos, foi como antigamente quando eu e Sam fazíamos bate-volta para a cidade de um para a de outro.

Conheci Samuel antes de me mudar para a Rússia, foi quando fiz intercâmbio e fiquei na casa dele, quando Sam ainda morava com seus pais. Desde então somos muito próximos e sempre que preciso de ajuda com Emily, Sam se dispõe para me ajudar, ela adora o Sam então além de tudo é como se ele fizesse parte de nossa família. Já fazia muito tempo que eu não vinha para Suzdal, era uma cidade bem bonita e tranquila, apesar de atrair muitos turistas todo ano (principalmente durante o inverno). Emily sempre me perguntava porque não morávamos em Suzdal, mais perto de Sam, mas tive que ir para Moscou justamente para dar continuidade no tratamento dela. Mas meu plano, sem dúvidas, era voltar para lá algum dia.

Quando estávamos chegando perto da entrada da cidade, eu notei alguns soldados lá na frente e na hora falei pra Emily pular e se esconder nos bancos de trás e foi isso o que ela fez sem hesitar. Um dos soldados que estava fora da guarita, sinaliza para que eu parasse o carro ali do lado, então faço conforme o ordenado, tentando não parecer nada suspeito. Mas sinto e tenho medo de que todo o suor que me escorre (de nervoso) me entregue, então tento disfarçar mantendo uma postura normal no banco.

- De onde está vindo, senhor? – o soldado que se aproximou pergunta

Não era essa a pergunta que eu esperava. Eles já deviam saber do que estava acontecendo em Moscou e se eu falasse que estava vindo de lá, provavelmente eles saberiam que eu estava fugindo, eu não poderia falar que estávamos vindo de lá. Os soldados tinham o mesmo uniforme dos outros em Moscou, a roupa toda preta, com uma boina também preta com um desenho de um olho branco contornado em vermelho estampado bem na ponta. Eram eles, os homens de Mikhail Ivanov.

- De Posad... – respondo, tentando ao máximo não gaguejar. Mantenho um sorriso nada forçado no rosto, algo mais natural e comum – vim trazer alimento para um amigo que está doente. Sou a única pessoa que está cuidando dele.

- Hummm... – o soldado resmunga. Ele dava algumas olhadas dentro do carro e eu torcia para que ele não encontrasse Emily, torcia para que ela estivesse completamente camuflada no chão do carro. – tudo bem. Pode passar, senhor.

Sinto um alívio tão grande e em seguida todo o peso que eu sentia deixou o meu corpo de uma só vez, minha vontade era de gritar e comemorar, mas eu apenas assenti com a cabeça e continuei, entrando na cidade. Percebo que Suzdal não está o mesmo caos que estava acontecendo em Moscou, muito pelo contrário, a cidade parecia a mesma de sempre, bem tranquila e quieta.

Samuel morava em uma parte mais afastada da cidade, em um vilarejo bem longe do centro. Ele havia se mudado da casa de seus pais, sempre me dizia que odiava aquele movimento onde eles moravam e preferia lugares mais tranquilos – fora justamente por isso que ele não topou ir morar comigo na Capital – e agora morava sozinho na parte mais isolada de Suzdal. Não que isso fosse ruim para ele, Sam adorava ter pouca interação com as pessoas, ele sempre foi uma pessoa mais sossegada, na antiga casa de seus pais, ele vivia dentro da biblioteca – sim, os pais dele tinham uma biblioteca em casa – lendo qualquer tipo de livro. A biblioteca realmente era muito atraente e silenciosa, além de muito gigantesca e espaçosa. Lembro-me do dia em que tivemos uma de nossas primeiras interações, foi dentro da biblioteca, uma conversa peculiar, porém agradável:

- Se você não gosta muito de pessoas... – digo, sentado ao lado dele na frente de uma das estantes enormes recheadas de livros – então porque é tão fissurado pelos livros?

- Mas eu nunca disse que não gosto de pessoas. – ele respondeu, sem rodeios – Disse que não sou bom em interagir com elas e isso é verdade. E os livros... eles nos mostram muito mais do que pessoas... dentro desses encadernados há o registro de uma mente brilhante que teve uma ideia e com base nela criou todo um mundo, é como se... eu estivesse olhando para uma pintura gravada há anos no passado. Livros são fotografias que mostram o que fomos incapazes de notar antes, algo que sempre esteve ali mas deixamos passar despercebido porque somos assim... humanos não se importam muito com detalhes.

- Você é... – lembro de dizer – realmente fascinante, Sam!

E até hoje sigo com aquele mesmo pensamento. Sam é uma pessoa incomum e justamente por isso é fascinante, ele não é como eu, ou como você que está lendo isso. Ele é perceptível e apesar de muitas pessoas o rotularem apenas como Autista, eu costumo dizer que Sam vai além disso, ele é um gênio que nunca iremos compreender, o mesmo mundo que ele vê não é o mesmo que nós vemos e isso que o torna tão incrível.

Depois de um tempo dirigindo na cidade, finalmente chegamos no vilarejo onde Sam morava. Nesse vilarejo haviam várias casinhas bem pequenas, realmente só dava para, no máximo, viverem duas pessoas dentro delas. Pessoas vinham até aqui procurar uma vida mais tranquila e menos movimentada, e até a vizinhança daquele lugar era mais agradável e receptiva, todos conheciam e gostavam de Sam. Nem movimento com carros havia naquele lugar, era realmente muito deserto.

Paro o caro na frente da casa de Sam e peço para que Emily permaneça dentro do carro até que ele atenda a porta e ela me obedece. Bato três vezes na porta até que escuto Sam gritar e os seus passos firmes no assoalho. Quando ele abre a porta vejo que não mudou nada, continua o mesmo de sempre. A pele parda sem nem uma marca, a barba bem feita, seus cabelos muito bem cortados, presos em um rabo de cavalo.

- OH AINDA BEM! – Sam grita, me pegando de surpresa ao me abraçar tão forte – Você conseguiu fugir, cadê a Emmy?

- Está no carro ainda, pedi para ela ficar. – respondo

- Venham, entrem agora. – Sam diz me puxando para dentro da casa.

Antes de tirarmos nossas bagagens, Sam insiste para que sentamos e tomamos um café enquanto conversamos. Nós sentamos em sua sala, nos sofás enquanto assistíamos ao noticiário, estava ligado no canal principal e ainda transmitiam o golpe que estava acontecendo em Moscou.

- Não vai demorar muito até Mikhail tomar o controle de tudo... – Sam diz, servindo o café em nossas xícaras que estavam na mesinha de centro.

- E ele pode fazer isso? – Emily pergunta, preocupada

- Não só pode como já fez, querida. – ele responde – Se antes os Ivanov já tinham muita influência no governo, depois que venceram a guerra... sua popularidade aumentou ainda mais.

- E o que vamos fazer, Sam? – pergunto, tentando não parecer assustado na frente de Emily – Digo... não podemos ficar aqui, se eles acharem Emily vão tira-la de mim.

- Andrei está criando postos de reabilitação por toda a Rússia... – Sam conta – é para lá que estão levando os jovens que capturam.

- O que são esses postos de reabilitação? – Emily pergunta, curiosa

- Resumidamente? Lavagem cerebral. Estão levando nossos jovens para lá para reeducarem e inserirem os mesmos no exército futuramente. – ele explica, Sam não tirava os olhos da TV

- Isso é loucura... – digo, completamente apavorado.

- Nós vamos sair daqui, da Rússia. – Sam responde e sinto um medo gigantesco percorrer todo o meu corpo. Se saíssemos da Rússia nunca conseguiríamos voltar mais e tudo o que precisávamos estava ali, havia deixado tudo o que eu tinha em Califórnia para vir para Moscou para dar início ao tratamento de Emily e agora... eu teria que deixar tudo.

- I-Isso... – começo dizendo – Isso é quase impossível, Sam... eles provavelmente já chegaram na fronteira... corremos muito risco.

- Hank, não se preocupe. – ele diz, colocando sua mão em meu ombro – Vamos ficar bem, um... como eu posso dizer? Um colega meu ele... ele vai nos ajudar a atravessar a fronteira. São rebeldes, Hank.

- E-Eu... – digo, me levantando do sofá – Emily, eu e o tio Sam vamos conversar um minutinho, nos espere aqui e qualquer coisa grita.

Emily faz cara feia mas vê que não há muito o que ela possa fazer, então só aceita quieta. Puxo Samuel até para o seu quarto e quando chegamos eu fecho a porta e a tranco.

- Sabe que não posso sair daqui do país. – respondo, indignado – O doutor está aqui, o tratamento de Emily ainda não terminou, ela logo iria fazer a cirurgia.

- Hank, se liga! – Sam retruca – Não há mais doutor, não há mais tratamento. Se ficar aqui eles vão captura-la e você nem sabe se o médico ainda está vivo ou se ele já foi embora. Todos estão fugindo, Hank. Não há outra opção no momento.

- E esse seu “amigo” por acaso é o Matteo?! – digo, sabendo que vou me arrepender de ter dito aquilo

- Caralho, deixa de ser infantil! – Sam se enfurece – Nós terminamos um ano atrás mas ainda somos amigos. Matteo é um rebelde e pode nos ajudar, Hank. Ele é o único que pode, é pegar ou largar. Quer ficar aqui e perder a Emily ou quer arriscar sair do país e ao menos viver uma vida segura longe daqui? Os Ivanov já tomaram conta de todo o país e não demorará muito até tomarem o mundo todo, teremos que viver escondido o resto de nossas vidas e isso se conseguirmos sobreviver a qualquer uma dessas merdas. Você acha que eles vão pegar leve com Emily só porque ela é doente?! Não, acorda. Ludwig é o braço direito do Sir. Ivanov e ele provavelmente fica com as crianças doentes para fazer experimentos, ela se tornará uma cobaia, Hank. Precisamos fugir, só nos resta fugir!

Por mais que eu não quisesse aceitar, sabia que Samuel estava certo. Não havia outra opção, eu jamais submeteria Emily a experimentos, ficaria louco se ela caísse nas mãos do Novo Governo. Para mantê-la perto de mim e segura, eu teria que abrir mão de tudo novamente, tudo por ela, apenas por ela.

- Tudo bem... – digo, por fim – me desculpe. Qual é o plano?

- Amanhã de manhã uma amiga do Matteo, também rebelde, virá nos buscar. Iremos para Quebec, no Canadá. – ele começa a explicar – Então vamos ter que acordar muito cedo, você trouxe os medicamentos da Emmy?

- Estão todos na bolsa dela... – digo, ainda preocupado

- Hank... – Sam diz, colocando suas mãos em meus ombros, me consolando – nada acontecerá com Emily, não enquanto eu estiver vivo.

Minha preocupação não era apenas Emily naquele momento, não queria que Sam se arriscasse conosco... não queria que chegasse a esse ponto mas eu não poderia controlar aquela situação. Tudo estava fora de controle, nós estávamos fora de controle. Depois que saímos do quarto, vamos até a sala e explicamos o plano com todos os detalhes para Emily que parece topar, mas percebo que ela estava muito cansada então digo para irmos deitar, até porque teríamos de acordar muito cedo no dia seguinte e assim fizemos.

Emily e eu ficamos no quarto de hóspedes, Sam arrumou nossa cama. Uma cama de casal bem grande, Emily ficou com o lado esquerdo enquanto eu deitei do lado direito. Ela já havia dormido, mas eu... por algum motivo não conseguia pregar os olhos. Não conseguia parar de pensar naquelas pessoas que apareciam no noticiário, nos tornaríamos igual a eles, refugiados. Não teríamos mais um lugar fixo para morar e provavelmente jamais seríamos aceitos aqui novamente depois de cruzar a fronteira e não era isso o que eu queria para nós e provavelmente... também não era o que aquelas pessoas do noticiário queriam, mas não tínhamos opção. Aos poucos o sono veio se aproximando cada vez mais e quando menos percebi, ainda olhando para o teto do quarto e mergulhado nos meus pensamentos temerosos, eu finalmente adormeci.

*

No dia seguinte, acordamos quando era ainda umas cinco da manhã para nos prepararmos. Antes de arrumarmos as coisas, faço o leite de Emily, que era um especialmente para ela, já que precisava de nutrientes específicos para mantê-la de pé e logo depois vou tomar um banho. Não sabia quando teria a chance de tomar outro novamente, então se aquela seria uma daquelas poucas vezes agora, eu precisava aproveitar a oportunidade.

Quando saio do banho, já arrumado, vejo Samuel sentado no sofá da sala lendo algum livro. Me sento na poltrona ao lado do sofá e vejo a capa do livro: As Crônicas de Gelo e Fogo de George Martin.

- Eu pensei que já tivesse lido todos os livros dessa saga. – digo, tentando puxar assunto. Não gostava de interromper a leitura de Sam e ele também detestava quando o faziam

- E “terminei”... – Sam faz as aspas com os dedos – é até louco pensar que já estamos em 2059 e o último livro não saiu. Maldito George Martin!

- E está relendo?! – fico surpreso

- Sim. – Sam responde, sem mais – Se estivéssemos nesse universo, de qual casa você acha que os Ivanov seriam?

- Ah... – digo, pensando – não sei... provavelmente os Lannisters?

- Sabia que diria isso, é previsível. – Sam responde, rindo. Mas ele ainda não havia tirado os olhos daquele livro – Entendo a sua linha de raciocínio, realmente os Lannisters antagonizaram muitos momentos, dependendo do ponto de vista claro, mas não sei se os Ivanov se encaixariam neles...

- E por que não? – pergunto, agora ainda mais curioso pela resposta de Sam

- Porque não os conhecemos. – simples assim – Sabemos quem eles são mas ao mesmo tempo não sabemos. Quem são os Ivanov por trás das cortinas? O que acontece dentro do Novo Governo?

- Então em qual eles se encaixariam melhor?

- Não sei... os Tyrell são surpreendentes também... – Sam parecia ainda mais pensativo – Enfim, isso não importa. Emmy já acordou?

- Já sim, está se arrumando. – respondo – Quando que essa tal amiga do Matteo chega?

- Ele me mandou uma mensagem assim que acordei, e... – eu sabia que vinha algo aí – será que você conseguiria nos levar até o aeroporto?

- Aeroporto?! – exclamo e depois percebo a urgência em meu tom. Não quero que Emily nos ouça discutindo então o abaixo – Sabe como vai estar aquele lugar, Sam. Eles vão nos pegar!

- Hank, confie em mim. Matteo sabe o que faz, ele não nos mandaria para o matadouro. – eu sabia que Sam estava tentando em acalmar e passar confiança, mas mesmo assim a ideia me parecia absurda.

- Não é o que me parece. – respondo por fim, furioso.

No fim, não havia como ceder àquele pedido, Sam era o único que poderia nos ajudar naquele momento. Pedi para que Emily terminasse de se trocar e já arrumasse sua mala novamente para coloca-la no carro, aproveitei já para guardar os seus remédios dentro do carro para não esquecer e até estava pensando em passarmos em uma farmácia antes de sairmos de fato da cidade. Quando por fim terminamos de colocar todas as coisas dentro do carro, nós deixamos a casa de Sam e começamos a ir em direção ao ponto de encontro que ele havia marcado com Matteo.

Já havia muito tempo que Sam e Matteo haviam se relacionado, mas eu lembro como se tivesse sido ontem. As coisas para os dois foram tão intensas que era impossível de não acompanhar, Sam nunca havia estado em um relacionamento sério e aquilo era tudo muito novo para ele. Ele sempre foi uma pessoa com diversas inseguranças, não tinha a necessidade de estar sempre rodeado de pessoas, mas também não gostava de encarar a escuridão de seu silêncio e quando eu decidi me mudar para Moscou, Matteo entrou na vida de Sam fazendo o maior barulho. No começo eles eram o casal que todos queriam ser, Matteo era uma pessoa amorosa e que fazia de tudo por Samwise, e talvez seja exatamente por isso que o relacionamento deles se converteu para uma prisão e no final, pelo bem dos dois, eles tiveram que cortar laços. Por isso eu me choquei quando Sam me disse que ainda mantinha contato com Matt, eles haviam se afastado completamente e cortado qualquer tipo de contato. Quando foi que as coisas mudaram sem eu perceber?

- Precisamos ter cuidado... – Sam diz, ele estava sentado no banco de carona e Emily deitada nos bancos de trás – Matt está me dizendo que os Guardas de Mikhail estão tomando toda a Rússia.

- O que será que eles estão planejando com tudo isso? – pergunto, temendo a resposta.

- Uma reforma... – ele responde, pensando alto – global. Os Ivanov são a maior potência mundial atual, eles têm poder não somente para tomar toda a Rússia, mas para tomar o mundo todo.

- Como isso tudo foi acontecer? Bem de baixo dos nossos olhos... é bizarro... – digo, tentando me manter concentrado na estrada.

- Eles focaram nas “maiores” potências durante a terceira guerra... – Sam começa a contar – o Talibã perdeu completamente as forças depois que o líder foi morto, os Estados Unidos já estavam completamente derrotados e rendidos depois da morte de Rodrick e quando Mikhail foi sequestrado pelo exército as coisas só pioraram, Andrei viu a necessidade que tinha em manter a sua imagem de força e firmeza e depois que os Ivanov mataram toda a família na Coréia do Norte... enfim, as coisas só foram aumentando, por isso chegamos onde estamos hoje.

- Eu tenho medo, Sam... – digo, olhando para Emily pelo espelho dentro do carro. Ela parecia tão calma enquanto dormia, tão serena, tão tranquila, em paz. – eles queriam pegar a Emily, queriam tira-la de mim e não sei para onde a levariam e depois... eles mataram crianças e idosos bem na nossa frente... bebês, Sam... eram bebês...

- Nada vai acontecer com Emily, Hank... – Sam tenta me acalmar, pousando sua mão em meu ombro e sorrindo gentilmente – nós vamos conseguir sair daqui, Matteo vai nos tirar do País e você poderá viver tranquilamente com Emily em um lugar mais afastado disso tudo.

- E você? – pergunto, aquela pergunta estava me assombrando desde que havia chegado na casa de Samwise – Poderia vir conosco, sabe que Emily iria adorar, ela te ama.

- Eu tenho um propósito maior a cumprir, meu amigo. – Sam responde, sem rodeios – A causa rebelde precisa de mim.

- É arriscado, Sam... – tento tirar aquilo da cabeça dele e lembro de como Emily iria apoia-lo, ela provavelmente se uniria aos rebeldes também, era uma menina muito corajosa e que nada temia. – você mesmo me disse que os Ivanov são a maior potência mundial. Acha mesmo que os rebeldes têm chances contra eles?

- Enquanto houver gente para lutar, haverá esperança, Hank.

Eu já havia me esquecido de com quem estava falando. Sam era uma pessoa com muita garra e força de vontade e dificilmente ele abaixava a cabeça para algo, Emily havia puxado essa garra dele, talvez por tanto conviverem juntos e eu não achava isso ruim, por mais que eu e Sam nos desentendêssemos às vezes e discordássemos de algumas coisas, ele era uma ótima influência para Emily. Havia ensinado muitas coisas para ela, fora Sam que despertara a paixão por literatura que ela tinha hoje, incentivando a leitura desde que ela era muito novinha. Todo aniversário de Emily ele a presenteara com livros (e claro, isso não lhe faltava) e ela achava isso o máximo, Sam sempre lhe trazia os lançamentos que ela tanto queria. Se algo acontecesse comigo, eu sabia que Emily ficaria em boas mãos, com Sam.

Depois de algum tempo dirigindo, finalmente chegamos no ponto de encontro. O aeroporto estava lotado e nem conseguimos estacionar no estacionamento do local, tive que parar o carro na frente de uma casa. Emily finalmente acorda e desce junto conosco para pegarmos as malas. O lugar estava mais cheio do que eu pensei que estaria, as pessoas estavam concentradas aos montes no aeroporto, uma fila gigantesca havia se formado no estacionamento e cobria boa parte da calçada do lado de fora.

- Vou ligar o rádio, vão para a fila, eu preciso de informações! – Sam nos diz e eu o obedeço.

Pego na mão de Emily e vamos juntos até o final da fila, não sabia muito bem quais eram as intenções de Sam, mas sabia que poderia confiar nele. Emily parecia aflita e ansiosa, pois não conseguia parar quieta e eu não conseguia me mexer muito, pois estava carregando muitas malas.

De repente, sinto o chão começar a dar alguns tremeliques. Olhei para baixo e eu via pequenos cascalhos saltitando no meio fio da calçada, todos sincronizados. Escuto um barulho e uma sombra enorme passar por nós, as pessoas se assustam e agacham involuntariamente e quando olho para cima vejo vários jatinhos com um símbolo estranho. Não era o emblema do exército, era um símbolo novo, um olho com contorno vermelho e a pupila branca. Quando olho para trás, vejo Sam acenando para nós e gritando alguma coisa, mas graças ao barulho dos jatos não consigo ouvi-lo. Tento ler seus lábios e sinto um medo paralisante quando consigo entender o que Sam estava nos dizendo: SAIAM DAÍ, VOLTEM PARA CÁ!

Um estrondo estoura bem perto de nós e uma gigantesca onda de vento passa por nós, trazendo consigo uma nuvem de poeira escura que nos deixa cegos e indefesos, e o vento havia trazido um cheiro metálico familiar e um pouco assustador. Minutos depois da poeira abaixar, dá para ver um pouco do outro quarteirão. Sangue, pedregulhos, prédios desmoronando e algumas pessoas que haviam sobrevivido ao bombardeamento se arrastavam pelo chão, completamente ensanguentadas, algumas carregando suas próprias vísceras.

- EMMY, CORRA, AGORA! – grito, virando-me para trás e empurrando Emily na direção de Sam. Deixo todas as malas e bolsas caírem e começamos a correr.

As pessoas ao nosso redor começam a correr desesperadas, a fila logo começa a se desfazer na frente do aeroporto. Algumas das pessoas caem e são pisoteadas brutalmente, chutadas e morrem ali mesmo. Pego Emily no colo com medo de que ela se separe de mim e lhe aconteça o mesmo. Escuto um próximo jato vindo em nossa direção e Sam aponta para que entremos em uma cafeteria ao nosso lado. Faço o que Sam me pede e entramos na cafeteria, várias pessoas fazem o mesmo e entram logo depois de nós.

- Tome, querida. Fique aí em baixo! – digo, empurrando Emily para de baixo de uma mesa.

- Mas e o Tio Sam, pai? – Emily pergunta.

Olho para trás, pela janela para tentar procurar Sam mas não o vejo mais ao lado do nosso carro. Na verdade, não consigo enxergar quase nada, a poeira ainda está um pouco alta e as pessoas continuam a correr do lado de fora, o caos já havia tomado conta da rua. Outro estrondo soa por toda a rua e a tremedeira volta a acontecer, outra nuvem de vento e poeira é levantada e fica ainda mais difícil de enxergar alguma coisa. As luzes dentro da cafeteria começam a piscar e falhar, os postes nas ruas se apagam.

De repente, começo a ouvir um som muito estranho no meio de toda aquela poeira, um som meio craquelado com várias pausas e gemidos, seguidos de passos fortes e rugidos completamente violentos e perturbadores. As pessoas dentro da cafeteria começam a chorar e alguns até rezam. Do lado de fora só dá para escutar os gritos de socorro, sons de vísceras e corpos sendo dilacerados e sei que aquilo não são sons de bombas, há algo lá fora.

O som estranho começa a ficar cada vez mais próximo e quando olho para o lado, na janela do lado de fora, visto uma criatura que eu nunca havia visto antes. Não sabia direito como detalha-la, mas era um humanoide completamente enrugado e nu, sua pele era pálida e gosmenta e foi então que eu percebi que os sons de “criques” vinham de sua boca que eram presas grossas e pontudas que batiam uma na outra e estavam no lugar dos lábios. Ela caminhava completamente corcunda, torta e se contorcia a cada passo que dava, as mãos na frente com garras gigantescas e completamente ensanguentadas com seus poucos dedos que se contorciam e dobravam anormalmente. Sua cabeça completamente careca com apenas alguns fios de cabelo brancos que ainda lhe restavam e quatro pares de chifres que iam da testa até a sua nuca e haviam mais de quatro olhos ali naquele rosto. Olhos vermelhos que se deslocavam rapidamente, era como se ela estivesse procurando por algo, procurando por presas.

Dou um passo lento para trás e a criatura rapidamente vira-se para a minha direção. Voou para de baixo da mesa junto de Emily e antes que ela diga alguma coisa, eu tapo a sua boca com a palma de minha mão e levo o meu indicador esquerdo para os meus lábios, indicando silêncio. Acompanho o olhar de Emily e vejo que ela já havia avistado a criatura, seus olhos se arregalam e percebo que ela começa a tremer descontroladamente.

O homem que está em baixo da mesa ao nosso lado começa a rezar cada vez mais alto e tento chamar a sua atenção sem fazer muito barulho, mas ele se nega a ficar quieto. Está completamente apavorado e nega a abrir seus olhos, está agarrado com um crucifixo próximo ao peito como se aquele simples colar de madeira fosse protegê-lo contra qualquer mal. A criatura entra na cafeteria e as pessoas logo a notam e tentam ficar quietas, enquanto o homem ao nosso lado continua a sua reza e o monstro segue o som do murmúrio até ficar bem de frente com o homem em baixo da mesa, ele continua com os olhos fechados. Assim que ele termina a sua reza e percebe que todos ao redor estão calados, ele abre os seus olhos e finalmente percebe a criatura com o rosto bem próximo do seu. O homem solta um berro e a criatura ruge e logo em seguida lhe dá um tapa com suas garras que cortam o pescoço e decepa a cabeça do homem que voa para longe, fazendo um rastro de sangue e assim o caos se espalha para dentro da cafeteria. O monstro ruge ainda mais alto e começa a correr na direção das pessoas, rasgando-as ao meio, transformando o ambiente da cafeteria em uma verdadeira carnificina.

Me levanto junto de Emily e carregando-a no colo começo a correr para a cozinha do lugar. Ao nosso redor, as pessoas saltam as mesas e cadeiras para tentar escapar do monstro que continua sua matança brutal. As mesas que antes eram brancas e marrons agora estão completamente sujas de sangue e com vários corpos e vísceras espalhados sobre elas. Quando finalmente chegamos na cozinha, deixo Emily no chão e fecho a porta, trancando-a logo em seguida o mais rápido possível. A porta dos fundos se abre e fico completamente aliviado ao ver Samwise e Matteo, um ao lado do outro.

- POR AQUI, RÁPIDO! – Matteo grita.

- O QUE SÃO AQUELAS COISAS? – pergunto quando já saímos da cafeteria, enquanto corríamos pelas ruas empoeiradas e ensanguentadas.

- NÃO FAÇO IDEIA... – Sam grita em resposta – PROVAVELMENTE ARMAS BIOLÓGICAS DOS IVANOV, MAS NÃO QUERO FICAR AQUI PARA DESCOBRIR!

- PARA ONDE VAMOS? – Emily pergunta

- Nós, os rebeldes, estamos fazendo de tudo para tirar as pessoas daqui. Os jatos que passaram por aqui, não jogaram bombas mas sim capsulas, foram delas que as criaturas estavam saindo. – Matteo começa a explicar – Estão tentando dispersar o pessoal, querem que vamos para o centro. Estão concentrando as pessoas em um único lugar, estão dizendo que será um pronunciamento do Mikhail. E parece que o líder do Revolta Vermelha foi capturado.

- A meta é tirar o máximo de pessoas que conseguirmos do país. Nossa única esperança é o Canadá. – Sam conta – Emily não pode ficar aqui. Estão pegando as crianças e adolescentes e levando-os para um reformatório, outras unidades do mesmo estão sendo construídas.

Sam e Matteo nos leva até um prédio onde alguns dos refugiados estão concentrados. As pessoas ali não fazem barulho algum, as criaturas ficaram na rua lá atrás e o objetivo é que elas não encontrem todo mundo ali. Matteo faz um pronunciamento dizendo que várias vans virão buscar o pessoal aos poucos e assim as pessoas ficam mais tranquilas. Porém ainda ouvimos as explosões, os tremores da terra e sentimos também o prédio balançar, as luzes piscam.

As vans começam a chegar e finalmente o povo vai entrando nos automóveis, cada uma das vans acomodam umas oito pessoas, então eles nos dividem bem. Quando chega a nossa vez, vejo que Sam não está nos seguindo, então deixo Emily na fila e vou até ele.

- Sam, o que você planeja fazer? Temos que sair daqui! – digo, pegando em seu braço.

- Eu não posso, não dá para deixa-los vencer, Hank! – Sam exclama, convencido a ficar

- Pense em tudo o que você vai perder se ficar aqui... – tento fazê-lo mudar de ideia.

- Pense em tudo o que já perdemos! – ele parecia furioso – Eles querem que sintamos medo, querem nos fazer desistir. Mas essa guerra é uma que vale a pena lutar. Você sabe disso, você tem a Emily, lutarei por vocês, por nós!

- Você não pode fazer isso, não sabe se vão conseguir vencer! – me sinto tão nervoso que não consigo parar de tremer.

- O nosso objetivo não é vencer, Hank. Precisamos lutar e passar tudo adiante para que no futuro continuemos a lutar... agora vá! – por fim ele sorri – Você precisa ficar com a Emmy.

- Prometa que você vai ficar bem e voltará para nós. – digo, ao dar um abraço em Sam.

- Não vai se livrar de mim tão fácil, Hank! – Sam diz, rindo.

Entro na mesma van que Emily havia entrado e ela estava bem cheia, porém a van parecia ser maior por dentro do que por fora, era essa a sensação que ela passava. Ainda não estava me sentindo seguro em deixar Sam para trás, mas ele havia insistindo tanto e eu sabia que não conseguiria convence-lo do contrário.

- Cadê o Tio Sam? – Emily me pergunta e engulo em seco. Não quero ter que mentir para ela de novo, sei que ela odiaria isso. A van já havia começado o caminho na estrada.

- Ele precisou ficar, para resolver alguns assuntos pendentes. – digo, tentando ser o mais claro e sincero possível.

- Deveríamos ter ficado com ele... – ela responde, cabisbaixa – por que não lutamos como o Tio Sam? Por que estamos fugindo quando são eles quem estão errados? Isso não é justo.

- Não, querida. Não é justo. Mas se ficássemos com o Tio Sam, nós só iríamos atrapal...

Um estrondo abrupto corta minhas palavras, a van sacode e começa a virar de ponta cabeça. Vejo a minha visão rodar e é nesse momento que tento procurar a mão de Emily ao lado da minha, mas não e encontro. Estávamos sem cinto de segurança então caímos dos bancos, sinto algumas pessoas caírem em cima de mim e tentarem se levantar no meio de todo aquele desespero e a van não para de rodar, estamos capotando. E mesmo antes de perder a consciência eu só pensava nela, rezava pela proteção dela, não sabia para quem estava rezando, mas para qualquer um que pudesse salva-la.

Quando finalmente desperto, percebo que estou fora da van. Minha visão está completamente turva e embaçada, começo a sentir uma enorme dor de cabeça e assim que passo a mão nela e olho para a palma de minha mão, percebo que estou sangrando. Estou no meio de um bosque e quando tento me levantar, eu simplesmente não consigo. Sinto uma dor insuportável na minha perna direita e quando viro-me com a barriga para cima e olho para baixo, vejo que havia quebrado o meu pé, ele estava completamente torcido para trás e o osso quase rasgando a minha pele, quero gritar, mas nada sai.

Então lembro-me de Emily e por alguns instantes eu até me esqueço da dor em meu pé. Levanto-me e com apenas uma perna eu vou dando pequenos saltos e me encostando nas árvores ao meu redor. A van estava logo em frente então eu fui o mais rápido que conseguia até ela e quando eu cheguei lá, eu vi um pequeno braço estendido para fora da van que estava virada de cabeça para baixo. O braço completamente ensanguentado e eu sabia de quem era aquele membro.

- EMILY! – grito, tentando empurrar a van, mas eu não conseguia ergue-la de jeito nenhum. Não ter nenhuma resposta vindo da Emily só me deixava ainda mais desesperado. – EMILY, NÃO... POR FAVOR, ACORDA!

Ela ainda não me respondia, seu braço não se mexia nem um pouco e por um momento eu vi que ela já havia me deixado e tudo o que eu pude fazer, foi me ajoelhar no chão e olhar para aquele membro e pensar que ali já teve uma vida, a vida da minha filha, da minha pequenina Emily e o que ela havia me dito antes daquilo acontecer rodeava a minha cabeça:

“Deveríamos ter ficado com ele... por que não lutamos como o Tio Sam? Por que estamos fugindo quando são eles quem estão errados? Isso não é justo.”

- M-Me desculpa... – eu me sentia um covarde e não queria aceitar aquilo, ela não tinha culpa, ela não merecia – me descul-pa que-rida... m-me perdoe...


Alguns anos depois

Mesmo depois de todo aquele tempo, eu ainda me sentia atormentado. Quando deitava a cabeça no travesseiro para tentar ter uma noite de sono tranquila, pesadelos grotescos e sombrios invadiam a minha mente. Sempre acordava completamente encharcado de suor e até com falta de ar. A maioria desses pesadelos envolviam Emily e Sam, depois do acidente eu não tive mais notícias de Samwell, nunca mais havia o visto. Tudo o que chegava para mim, era que os rebeldes continuavam a lutar pela conquista da fronteira e que estavam construindo uma cidade nela para que os guardas não passassem, uma cidade com uma muralha gigantesca que cruzava boa parte de toda a fronteira e que fora batizada de Ghetto (Gueto). Não sabia de muita coisa, pois não havia me juntado aos rebeldes, nem aos Anarquistas ou a Revolta Vermelha.

O grupo ao qual eu havia me juntado eram selvagens que viviam escondidos e saíam apenas para saquear vilas e vagantes que andavam sem rumo pela Classe C, os Saqueadores. Éramos considerados criminosos violentos tanto para o Novo Governo quanto aos grupos rebeldes.

- Ah, até que enfim a Bela Adormecida despertou! – Marco diz, saltando de sua beliche. Ele dormia bem em cima de mim e dividíamos o quarto desde que havíamos ingressado aos Saqueadores. – Vai adorar o que eu tenho para contar.

- Não enche o meu saco, Marco... – digo, levantando para arrumar a minha cama.

- Estou falando sério, cara! – ele exclama, completamente ansioso e animado – Jones finalmente vai nos dar um saque bom. Sabe o quanto esperamos por isso? Ele confia em nós.

- Como tem tanta certeza disso? – pergunto, um pouco curioso.

- Um dos nossos irmãos ouviu Jones conversando com o Quentin, estavam falando sobre nós dois, o quanto somos bons nos saques! - Marco sempre quis o reconhecimento de Jones.

Não posso julga-lo. Jones é o líder e fundador dos Saqueadores e Marco sempre quis ser o seu braço direito e ansiava em algum dia herdar o posto de Jones e faria de tudo por isso. Já eu não tinha essa ânsia pelo reconhecimento de Jones, tudo o que eu fazia era apenas para ter o que comer e onde morar, depois de tudo o que aconteceu eu fiquei desamparado por um longo tempo e me sentia muito solitário, até encontrar Machika, uma cadelinha que me acompanha até hoje.

- Faça o que quiser, cara... – digo, sem muito ânimo – preciso ir para o canil alimentar a Machika.

Saio de nosso quarto e já nos corredores vejo o pessoal caminhando para lá e para cá, haviam muitos Saqueadores ali e eu não me lembro do nosso grupo ter crescido tanto. Nossa sede era em uma antiga prisão abandonada e dormíamos e dividíamos as celas, mas não ficávamos presos, tínhamos controle de tudo ali dentro e limpávamos todo o lugar uma vez por semana, dividindo as tarefas.

Marco insiste em me acompanhar até o canil para cuidar de Machika. Já faziam meses que eu não a tosava e ela estava muito peluda e muitas vezes isso a atrapalhava em nossos saques. O canil ficava em uma casinha de madeira que havíamos construído alguns anos atrás para os nossos cães, ela ficava do lado de fora da prisão. Por dentro o canil era muito espaçoso e o teto era aberto, então os cães não ficavam estressados por estarem presos e também não ficavam em gaiolas e lá estava a minha Machika. Por mais que ela não fosse grande como os outros cães de caça dos Saqueadores – a maioria eram Rottweilers, Pitbulls e Pastores Alemães. Mas Machika não era nenhuma dessas raças, ela era uma Welsh Corgi Pembroke, uma raça de porte pequeno. Porém ela era muito feroz e fiel quando era preciso e por ser pequena conseguia entrar nos lugares mais apertados e estreitos.

- Vem cá, garota! – digo, chamando-a com assobios.

Quando me vê, Machika vem correndo toda animada em minha direção. Ela estava muito cheirosa, não fazia muito tempo que eu havia lhe dado um banho. Seu pescoço agora estava livre da coleira, geralmente eu só lhe colocava quando saíamos, dentro do canil não havia como os cachorros sumirem, estavam seguros o bastante para ficarem sem suas coleiras.

Enquanto eu estava ali, acariciando e brincando com Machika, eu parei por um breve momento e voltei a pensar em Emily e Sam. O que eles iriam achar se soubessem que eu havia me juntado aos Saqueadores? Será que eles poderiam em julgar por ter feito essa escolha? Eu me sentia sozinho e estava completamente perdido e desamparado quando encontrei o grupo, eu iria morrer de fome se não me juntasse a eles. Em alguns momentos eu me sentia arrependido por ter feito aquela escolha, mesmo tendo conhecido Marco, que não era um cara chato – apesar de ser bem irritante quando queria – mas algumas coisas que tínhamos que fazer, não eram de minha índole. Mas quando você está vivendo em uma sociedade completamente desigual e injusta, você tem que abrir mão de muitas coisas: sua índole, sua ética, sua humanidade.

- Nós vamos fazer isso! – digo repentinamente, assustando Marco que estava ao meu lado. Quando ele percebe do que eu estava falando, um sorriso se abre em seu rosto.

Queria que as coisas voltassem a ser como eram antes. Mesmo Emily estando doente naquela época, a sua cura não sendo certa, era algo que estava disposto a passar para vê-la bem. Quando perdi Emily e Sam, eu perdi minhas ambições, eu perdi os meus anseios, os meus motivos e nada do que eu vivia me importava mais. Eu falho em proteger as pessoas ao meu redor e a solidão continua a me cercar.

*

No dia seguinte, Marco me acorda novamente, muito animado com a nossa nova missão, o saque do qual ele sempre sonhou. Invadiríamos uma casa na qual estavam alguns dos refugiados sobreviventes para saqueá-los e eu só queria tomar o remédio ruim de uma vez, não tinha nada a perder. Nós nos aprontamos, nos armamos da cabeça aos pés e colocamos nossos trajes de saque, que nada mais eram do que roupas de camuflagem, assim ficaríamos invisíveis no meio da mata. As chances de sucesso do saque eram altas, Jones e Quentin nos informaram que as pessoas dentro da casa estavam desarmadas e completamente vulneráveis e era assim que agíamos sempre, pegávamos sempre as pessoas que não tinham condições de se defender, que tinham chances nulas de sobrevivência. Segundo Jones “estávamos acabando com o seu sofrimento nessa terra” já que eles morreriam mais pra frente, sem ter o que comer.

- Esse saque já está no papo, cara! – Marco exclama enquanto caminhamos até o canil para soltar Machika – Nem acredito que finalmente estamos sendo reconhecidos.

Por mais que eu quisesse estar animado como Marco, eu não conseguia. Ainda achava aquilo muito suspeito. Jones nunca nos deu tanta confiança, nunca mostrou tanto interesse em nós, então – por mais que nossos saques fossem sucesso – aquele interesse repentino era completamente suspeito e eu pretendia ficar em total estado de alerta durante a viagem. Não falei com Marco sobre aquilo, porque com certeza ele não me daria ouvidos, estava completamente atônito e animado com aquele saque. Jones e Quentin se despedem de nós na entrada da sede e sinto que aquela seria a última vez que eu veria aquele lugar, sinto que a minha vida mudaria mais uma vez.

O caminho era tranquilo, havíamos entrado no pequeno bosque e já seguíamos o mapa que Quentin havia nos entregado, com um X vermelho marcado bem no lugar no qual a casa se encontrava. Não era muito longe, mas era uma bela caminhada e Machika saía sempre em nossa frente, farejando os arbustos e árvores atrás de alguma presa fácil, porém ela sabia que os animais que ainda restavam, ficavam bem longe dali já que era nosso terreno.

- O que vai fazer com o dinheiro que ganharmos com esse saque? – Marco me pergunta, para quebrar o silêncio.

- Não faço ideia... – respondo, e é verdade. Eu não sabia o que queria fazer com o dinheiro, provavelmente só gastaríamos no Ghetto ou na Classe B (onde não éramos nem um pouco bem-vindos, mas pelo menos era mais fácil de entrar do que na Classe A, já que era fronteira com a Classe C).

É assim que vivemos agora, separados por classes, julgados por verbas e condições financeiras. Os rebeldes, refugiados e desamparados foram todos jogados na Classe C, enquanto as pessoas que tinham condições de uma vida melhor viviam na Classe B e a Elite, os Burgueses e patrões viviam do bom e do melhor - sem nem precisar trabalhar e vivendo dos custos da Classe B – em seus prédios altos e casas grandes e caras, a maioria vivendo em mansões ou apartamentos bons. Nós da Classe C vivíamos de restos que a Classe B deixava para trás e quando deixavam.

- Quero ir juntando o dinheiro para comprar uma daquelas casas da Classe B... – Marco dizia, com um sorriso fraco no rosto. – não aguento mais viver nesse lugar.

- É o nosso lugar... – começo e lembro-me do que Emily sempre me falava – temos que proteger o nosso lar e lutar por ele.

- Eu sei que você não quer sair daqui, Hank. – Marco responde, ainda com o mesmo sorriso no rosto – Mas é quase impossível de ter uma vida boa vivendo de restos que os outros nos deixam. Isso não é justo.

- Perdi a minha filha no golpe Ivanov... – digo, deixando o clima ainda mais pesado – ela sempre me dizia que o que era injusto é termos de fugir, de deixar o nosso lar sendo que são eles quem estão fazendo errado. Temos que lutar pelo que temos direito, pelo que é nosso!

- Eu não sabia disso, cara... – ele parecia surpreso.

- Isso não é justo mesmo, você tem razão, está certo... – continuo a caminhar enquanto falo – mas o que é justo? Foi justo eu ter perdido a minha filha? Foi justo o golpe? A vida não é justa, o universo e o mundo não é justo. Lutamos por isso, por lugares e vidas mais justas e é por isso que a luta nunca acaba.

- Chegamos! – Marco exclama, cortando o clima e correndo se esconder atrás de um arbusto.

E lá estava a casa, bem lá na frente. Uma casa bem grande até, com os seus dois andares, era um sobrado bem grande e tudo ao seu redor era tão calmo e silencioso que era quase impossível de acreditar que havia alguém vivendo ali naquele lugar. Ao lado da casa ficava uma horta feita com cercas de madeira que estava muito bem cuidada e não era para estar daquele jeito, Jones e Quentin nos disseram que a vida ali estava escassa e que eles não tinham condição muito boa de vida. Mas então por que tinham uma horta? Tudo aquilo estava muito estranho.

- Vai ser moleza entrar nessa casinha! – Marco diz, tirando uma pistola com silenciador da sua mochila.

- Não! – digo, abaixando sua mão abruptamente – Isso tudo tá muito estranho, é melhor entrarmos sem chamarmos a atenção...

- Cara, é só uma casa sem segurança alguma, está tudo aberto, não tem nem muros. – ele estava muito confiante, mas eu não.

- Temos que ter precaução, não sabemos se o que Jones e Quentin nos contaram é verdade... – sou direto no que preciso dizer – nos disseram que eles não tinham condições de vida e ali ao lado tem uma horta. Não acha isso contraditório?

- Não acho que Jones nos enganaria, ele não tem nada a ganhar com isso! – e Marco sempre saía na defensiva quando o assunto era o Jones.

- Isso é o que ele quer que você acredite. – continuo retrucando – Mas enfim, você vai pela frente e enquanto isso eu e Machika vamos pelos fundos, irei procurar e ver se há alguma entrada por lá. Entendeu?

- Tá bom, faremos do seu jeito então. – Marco diz, revirando os olhos.

- Ótimo, vamos lá! – digo, me levantando.

Machika me segue completamente silenciosa e atenciosa. Vamos para os fundos enquanto Marco tenta achar uma forma mais discreta de entrar pelas janelas da frente. Quando chegamos no fundo eu vejo algum tipo de alçapão que está trancado com um cadeado bem forte. Então eu pego a minha pistola com o silenciador embutido e atiro no cadeado, destrancando as portas do alçapão, peço para que Machika fique ali por fora vigiando escondida, caso alguém apareça. Pego uma lanterna e desço pela escada para o alçapão.

O lugar fedia a mofo e carne podre, estava completamente úmido e gelado, parecia que fazia muito tempo que alguém não descia e cuidava daquele lugar. Com a lanterna vou andando bem devagar, tentando não fazer muito barulho e mirando-a para iluminar primeiro os cantos. Comecei a desconfiar um pouco de quem estava vivendo naquela casa, pois nas prateleiras que tinham ali no alçapão, haviam muitos equipamentos que geralmente assassinos e sequestradores usavam: mordaças, cordas, panos, alicates, tesourões, produtos químicos e dentre outras mil coisas (até veneno para rato). Escuto um tinido estranho por trás de mim e quando viro-me para trás e miro a lanterna, algo vem na maior velocidade para cima de mim e eu caio sentado, largando a lanterna que cai no chão e ilumina o canto, mostrando-me algo que de início eu não quis acreditar.

Ali no canto do alçapão havia uma mulher amarrada e presa em uma camisa de força, completamente amordaçada e presa por uma corrente que ficava em baixo dos colchões velhos e rasgados onde ela estava em pé. Ela urrava e gemia e tentava dizer alguma coisa, mas a mordaça a impedia de pronunciar qualquer palavra. As luzes do alçapão se acendem de repente, iluminando todo o local e quando eu vejo o lugar por completo, o meu estômago começa a revirar. Lá dentro haviam várias marcas enfileiradas com diversos corpos dilacerados e mutilados cruelmente, alguns até abertos e completamente ocos, sem nenhum órgão e foi então que eu percebi que o cheiro de carne podre vinha dali e o ambiente gelado era por conta dos corpos, eu estava em um freezer. A moça amordaçada tinha a mesma tatuagem que nós, a marca dos Saqueadores.

Aquela não era a casa de refugiados e pessoas vulneráveis, era a casa de um canibal assassino e Jones havia nos mandado ali para morrer, era uma armadilha e eu precisava alertar Marco o mais rápido possível, se ele já estava dentro daquela casa, o perigo era certo.

Me levanto do chão abruptamente e tento não olhar para os corpos e nem para a moça quando me viro para a frente e começo a correr. Saio do alçapão e Machika ainda estava me esperando, ela nota o quão nervoso eu estava ao sair lá de dentro e vem toda preocupada ver o que eu precisava.

- Tire o Marco de dentro da casa, garota! – ordeno a ela – Isso aqui é uma armadilha.

Ela solta um latido e corre para dentro da casa, entrando pela janela da frente, assim como Marco havia feito. Eu não sabia em que cômodo Marco estava, mas nessa altura do campeonato já era para ele ter percebido que havia algo de errado, não havia mais ninguém ali dentro da casa – eu, pelo menos, espero que não – e eu não queria ficar ali parado, esperando Machika, tinha medo de que algo acontecesse a ela também. Então eu também entro na casa por aquela janela.

Por dentro a casa não era nada bagunçada, tudo ali estava muito bem arrumado e no seu devido lugar, completamente diferente de como estava o alçapão. Aquela não aparentava ser a casa de um assassino, era a armadilha perfeita para quando Jones quisesse se livrar de alguém. Entrei na sala e já me deparo com um lance de escadas bem grande, que dava para o próximo andar. A casa estava bem escura, pois nada estava aberto, nem as janelas, todas as cortinas e persianas as tapavam e o único barulho lá dentro era o do ar condicionado que continuava a funcionar (e eu não fazia ideia de como alguém conseguia manter um ar condicionado naquelas condições, na Classe C).

Cada passo que eu dava dentro daquela casa, o chão de madeira rígida rangia e eu já havia perdido Machika, não fazia ideia de onde ela tinha ido, provavelmente estava seguindo o rastro do cheiro de Marco. Vou até a escada e começo a subir os degraus, bem devagar e quando chego no segundo andar, sou pego de surpresa sendo puxado para a frente com a boca tapada e quando vejo era Marco. Ele leva o seu dedo indicador direito até os lábios, indicando silêncio.

- O que você está fazendo? – pergunto, sussurrando – Precisamos sair dessa casa. Jones nos enviou para uma armadilha!

- Do que você está falando, Hank? – Marco me pergunta, confuso.

- A pessoa que mora aqui, é um assassino, o alçapão está cheio de corpos e a maioria são de Saqueadores, os nossos que desapareceram do nada... – tento explicar.

- Não... isso não é possível... – ele estava incrédulo – por que Jones nos enviaria direto para o abate? Ele não tem nada a ganhar com isso.

- Isso é o que você pensa... agora vamos embora! – digo e Marco simplesmente aceita.

Quando já estávamos prestes a descer os degraus, começo a escutar o choro de um bebê que ecoa por todo o corredor. Quase que involuntariamente, meu corpo cria vida própria e começa a ir em direção ao barulho, como se a voz daquela criança me encantasse e me hipnotizasse. Esqueço-me completamente de Machika e Marco e entro no quarto de onde o choro estava vindo. Lá, ao lado de uma casa imensa de casal, tinha um berço e dentro dele uma pequena garotinha de pele caramelo que não parava de chorar. Sorrio e a pego em meu colo e começo a nina-la, para tentar acalmar.

Ao segurar aquela criança, eu senti o meu coração completamente leve e confortável em meu peito, algo que fazia tempo já não sentia. Lembro de quando eu pegava Emilly bem pequena em meu colo e sentia o seu calor, o seu cheiro e não consigo evitar as lágrimas que começam a escorrer de meus olhos e tento afasta-las da garotinha que já havia adormecido.

- Ela dormiu... – quando viro-me para trás, assustado com a voz repentina, vejo uma mulher na porta. Marco logo na frente dela e a moça com uma pistola encostada na cabeça dele.

- O-Olhe... – digo, voltando a criança para o berço bem devagar – nós já estávamos indo embora, nunca faria mal à sua filha.

- Não volte ela para o berço! – ela diz, largando Marco e vindo até mim, com a arma abaixada. – Você precisa tira-la daqui, leve-a com você.

- O q-que?! – exclamo – E-Eu não posso leva-la, onde vivemos não há como criar uma criança.

- Por favor, você tem que leva-la! – a mulher implora quase chorando – O futuro da minha menina é incerto aqui e tenho medo de que ele a machuque.

- Hank, não há como levarmos essa menina para a sede, não há como voltarmos para a sede. – Marco diz, vindo até mim – Ficaremos desamparados, não temos para onde ir!

- Vão para o Ghetto! – a mulher indica – Os rebeldes estão construindo a cidade ainda, mas ela já está aberta para moradia, eles acolhem todos. Mas por favor, você precisa cuidar da minha menina, bem longe daqui, desta casa!

O olhar daquela mulher... eu conseguia sentir o seu desespero, o seu pavor e ela estava sendo completamente franca, estava assustada e preocupada com o futuro de sua criança. Haviam hematomas roxos e vermelhos espalhados por todo o seu corpo e até algumas queimaduras de cigarro, era nítido que aquela mulher estava passando por maus tratos. Não tinha como negar o seu pedido e deixar a criança ali, não naquela casa, com aquela vida.

- Marco... – digo, depois de muito pensar – vá buscar Machika!

- Você não deve estar falando sério, cara... – ele não estava nada satisfeito.

- Rápido, ainda temos tempo antes de ele voltar, posso tirar vocês pelo alçapão! – a mulher diz, indo até a porta.

Marco sai para buscar Machika e vamos para a sala, ele volta alguns minutos depois com ela e peço um pedaço de pano para a moça. Ela me dá o bercinho móvel que ela geralmente usava para transportar a criança e eu passo o pedaço de pano por baixo da barriga de Machika, amarrando-o em baixo do bercinho para prendê-lo bem firme e não fica muito pesado, a cadelinha consegue caminhar normalmente com o bercinho em suas costas.

- Vamos! – a mulher diz – Vou leva-los para o alçapão.

- Qual é o nome da pequena? – pergunto, enquanto caminhamos até o alçapão. Para quebrar o gelo.

- É Daniella... – ela responde, destrancando a porta na nossa frente, com um sorriso fraco no rosto – sabe... eu não ia cria-la, estava para aborta-la, pois quando ele me tocava... aquele homem... eu me sentia suja, me sentia um asco. Mas quando ela começou a crescer dentro de mim... eu senti algo completamente diferente. Senti o seu calor, sentia a sua presença e não me sentia mais sozinha e talvez eu seja egoísta... talvez todos sejamos né?

- Eu acho que você está dando o seu melhor para criar essa pequena... – digo em resposta – e me certificarei de que ela saiba disso quando estiver maior.

- Agradeço, de verdade... – eu senti a sua voz dar uma tremida, uma falhada, sinalizando a vontade de chorar – vocês são bons homens e já não restam muitos como vocês. Me sinto segura em deixa-la com vocês, sei que irão cuidar muito bem dela...

Queria poder concordar com ela, mas aquela mulher mal nos conhecia e só nos estava confiando a sua filha porque eu a havia acalmado lá em cima. Não fui um bom homem, as coisas que fiz para sobreviver, as coisas que muitos de nós Saqueadores temos de fazer para ter o nosso lugar, não nos tornam bons e eu fiquei pensando nisso até descermos para o alçapão. Que exemplo eu teria dado para Emily caso ela ainda estivesse viva? Que exemplo eu daria para aquela garotinha? Eu não era bom, não era confiável e mesmo assim aquela mulher queria me entregar a sua filha. Será que eu deveria aceitar aquilo? As coisas mudaram tão rápido, as pessoas fazem de tudo para sobreviver na Classe C. É até errado aquela mulher nos entregar a sua filha, mas o seu desespero não a fazia pensar muito bem, ela só queria que a pequena conseguisse um lugar melhor, com pessoas melhores e eu também.

Descemos para o alçapão, onde lá estava a moça acorrentada e quando Marco vê aquilo e os corpos nas macas, fica completamente em choque, eu sabia que ele não reagiria muito bem.

- Quando eu abrir essa porta... – ela diz, levantando seu braço e tocando nas portas de cima – corram o mais rápido que conseguirem para a mata, não sei que horas ele irá voltar. Sumam.

- Sabe que você pode vir conosco né? Não precisa deixa-la... – ofereço a ela a chance de uma vida melhor.

- Eu tenho que terminar o que começamos, não posso deixar que ele continue com tudo isso... – ela diz, olhando para trás, onde estavam a mulher acorrentada e os corpos. – enfim... boa sorte a vocês.

Ela destranca a porta e a empurra lentamente. Assim que a luz do sol da tarde entra no alçapão, com ela vem a sombra, a silhueta de alguém que já nos aguardava do lado de fora. Tudo o que escuto dali pra frente é um estrondo e seguido dele um zumbido que nos atormenta e me faz tapar os ouvidos, é tão agudo que chega a doer. Escuto Marco gritar abafado para que Machika voltasse para a casa com a criança e quando olho para baixo, vejo o corpo da mulher que estava tentando nos salvar estirado no chão, com um buraco gigantesco aberto em seu peito e uma poça de sangue formando-se em baixo de seu corpo e seus olhos ainda abertos, mas já sem vida alguma. Quando volto a olhar para a porta do alçapão, vejo um homem bem grande segurando uma escopeta, do seu cano saía fumaça do disparo que havia acabado de desferir. Era ele

Simplesmente viro-me para trás e começo a correr, sem nem olhar para trás. O zumbido continua a me atormentar, mas agora já escuto as coisas com um pouco mais de clareza.

- HANK... – escuto Marco gritar – VOLTE PARA A CASA E TIRE MACHIKA DAQUI COM A CRIANÇA!

Não sabia o que Marco pretendia, mas acreditava que ele conseguiria nos ajudar a sair da casa. Volto para dentro da casa, acompanhado por Machika e peço para que ela se esconda em algum lugar. A criança já havia despertado com todo aquele barulho e agora chorava sem parar e não tinha como acalma-la agora, não havia tempo para isso. Precisávamos sair daquela casa, o mais rápido possível.

- Machika, garota! – chamo-a e ela vem correndo até mim. Me ajoelho para ficar mais próximo dela – Leve a pequena para fora e fique nos esperando lá na mata. Prometo que a alcançaremos, mas eu preciso voltar para ajudar Marco.

Machika late concordando com o plano e assim que ela sai da casa com a garotinha, saltando pela janela eu pego novamente a minha pistola com o silenciador, mas algo cai de minha bolsa e rola pelo chão. Era uma granada. Era a nossa chance de acabar com tudo aquilo, assim como a mãe de Daniella queria e eu sentia que tinha esse dever. O dever de ajuda-la a terminar com tudo aquilo, a mata-lo e deixar que os corpos e a mulher presa lá em baixo pudessem descansar, não podia deixar aquela chance passar.

Saio da casa pela janela também e corro para a parte de trás, parando na frente das portas do alçapão.

- MARCO! – grito o mais alto que posso ao ver Marco desviando dos tiros do homem – PEGUE A MULHER E CORRA PARA A CASA!

Sem pensar duas vezes, Marco aceita minhas ordens. Dá um tiro nas correntes soltando a mulher presa e carregando-a ele a leva até a porta. Tiro o pino da granada com a boca e começo à cronometrar o tempo em minha cabeça, contando-o. Consigo ouvir o barulho do relógio tiquetaqueando em minha cabeça e quando bate o terceiro toque, com o homem correndo em minha direção, eu lanço a granada para dentro do alçapão e viro-me para trás, começando a correr.

Escuto o estrondo da explosão e o impacto me joga para longe, até a mata. A explosão lança vários estilhaços da casa para o ar. Olho ao meu redor, procurando por Marco e por um momento eu achei que ele não havia conseguido sair a tempo da casa, mas alguns minutos depois, ele surge com a moça, ajudando-a a caminhar.

- Não acredito que conseguimos! – exclamo, indo em sua direção.

- Onde está a criança? – Marco pergunta, preocupado.

Chamo Machika e logo ela aparece, dentro da mata, correndo em nossa direção, ainda com o bercinho amarrado e bem preso em suas costas, com a criança adormecida lá dentro.

- O que vamos fazer agora? – pergunto, sem saber para onde ir.

- Você vai fugir com essa criança, vá para o Ghetto... – Marco diz, sem se incluir nos planos.

- Mas e você? O que planeja fazer? – pergunto, preocupado com o que Marco pretende – Sabe que não pode voltar para a sede. Jones deve achar que estamos mortos.

- Farei ele acreditar que você está morto... – Marco diz, com um olhar completamente diferente. Ele parecia descrente e eu não o julgo, havíamos sido traídos por nosso próprio chefe e por mais que eu já esperasse por aquilo, Marco não. Ele confiava em Jones, se inspirava em Jones, se espalhava naquele homem. – farei com que ele acredite em mim e quando ele me der as costas... eu vou mata-lo!

- Isso é perigoso demais, Marco! – retruco, tentando tirar aquela ideia da cabeça dele – Como sabe que Jones não irá mata-lo antes?

- Ele não vai, porque é um covarde, não quer sujar as próprias mãos. – Marco responde – Nos mandou para cá para não criar suspeitas dentro da sede. Assim como fez com ela aqui e com todos os outros Saqueadores que estavam lá dentro, naquele açougue humano.

- Eu irei ajuda-lo, não estará sozinho. – a moça diz – E quando contarmos a todos sobre o que Jones fez e anda fazendo, todos irão se virar contra ele, será um motim!

- Pode ir, Hank... – Marco diz, agora sorrindo e olhando para o bercinho em cima de Machika – você tem um dever agora e garanto que irá ser um ótimo pai para essa criança. Não vai ser uma boa influência para ela se continuar agindo conosco.

Marco estava certo, o que fazíamos não era legal, não era bom e eu queria que aquela criança crescesse longe de tudo aquilo, por mais impossível que fosse. Acredito que uma hora, iriamos reencontrar os Saqueadores, reencontraríamos Marco e nessa altura do campeonato, ele seria o novo líder do bando.

- Espero que fiquem bem! – digo, dando um forte abraço em Marco, me despedindo.

- Ficaremos... – Marco diz, me abraçando também – e tente nãos e meter em confusão, viva em paz. Você merece...

Fico ali vendo Marco e a mulher se afastarem de mim e depois fico ali, apenas com Machika, olhando para os escombros da casa. Olho para dentro do bercinho, onde a pequenina dormia tranquila e Machika olhava para mim, querendo saber de sua próxima missão, minha próxima ordem. Pego o meu chapéu rosa dentro da bolsa, um chapéu que havia pego na casa onde havia encontrado Machika, coloco-o na cabeça e levanto a bandana no rosto, tapando até o nariz.

- Vamos Machika... – digo, começando a caminhar em direção à mata – precisamos encontrar nosso novo lar.

Machika late, animada.

 
 
 

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